Foi na Pré-História
que se colocaram os primeiros desafios ao Homem que tinha na Terra o seu único
universo e não será ficção julgar que a Humanidade fez-se para o futuro a
partir do momento em que o Homem descobriu a tool para conquistar e defender o
território e para dominar o outro. Só a dominação pela força permitiu ao Homem evoluir-se
ao longo dos tempos adquirindo a capacidade para dar o salto no tempo e
conhecer novos mundos à medida que o meio o ia transformando também e que está bem reflectido no filme através dos vibrantes entardeceres naqueles vastos cenários paleolíticos. A tomada
de consciência que resultará no tal salto evolutivo, quiçá motivada por uma
qualquer força extraterrestre (aqui a ficção não terá necessariamente de ser
tomada à letra), está na forma e na figura daquele que é porventura o momento
mais clarividente e simbólico da história do cinema, aquele momento em que a
primeira arma do homem é arremessada aos céus num grito-macaco dando lugar ao
veiculo espacial em queda ascendente e que materializa uma outra distante
conquista do homem ali descentrado num universo sem céu e sem horizonte.
Ao som do Danúbio,
já o Planeta é um passado e encaminhados pela força magnética do misterioso Deus
das estrelas já a busca pelos fundamentos fundamentais da raça humana impõe a Odisseia
rumo ao desconhecido, para onde tudo começou e de onde tudo terminará um dia. No
Espaço o diálogo é um acessório utilizado como instrumento que ajuda a
perpetuar o mistério e cada movimento é um ícone soberbo de mestria composto de
música e silêncio que nos eleva às profundezas da nossa estranheza. Tudo fica
projectado sobre nós na forma desse bailado que ao longo da obra de arte vai
lançando cada vez mais perguntas cujo fim não tem meio de devolver respostas lineares. Que
força é essa que um dia nos deu a objectividade para cumprirmos as nossas
capacidades mas que passados milhões de anos nos faz mover para o vazio mais
obscuro sob o risco de nos mostrar a “verdade”? Que terror é esse o da infalibilidade
electrónica e que, tal como nós, no fundo, apenas existe por se mover por
objectivos maiores do que a própria sobrevivência? E como se define a sobrevivência num contexto onde todos os conceitos estão inquinados pelas expectativas materiais do intelecto intra-humano?
Se a máquina serve
para cumprir o desígnio imposto pelo próprio Homem, e se a confiança que lhe é programada
para cumprir esse objectivo lhe dá a independência suficiente para no limite
decidir sobre a vida humana, não será abusivo dizer que o momento em que o último
sobrevivente desliga o supercomputador é de certa forma o momento em que ele desliga parte de si, aquela parte em que faz parte do processo de
racionalidade de uma comunidade culta mas que à distância de milhares de anos
está muito longe da verdade oculta que está para lá do entendimento do cosmos. Será
pois a partir desse momento, que desta forma o homem regressa às origens, a um
estado primitivo, sozinho e entregue ao destino que ali, já longe de 2001,
vai-se concretizar na última viagem por um caminho de psicadélica glória, para lá do infinito e com todo o esplendor
full of stars, rumo
ao conforto da casa de Deus, pois não será de outra coisa aquele
misterioso lugar onde o tempo avança para a morte à medida que quase
simultaneamente já o corpo renasce para um presente final.
Na revisitação que
fiz a 2001: Odisseia no Espaço, vejo agora claramente que este filme representa
aquilo que define a Sétima Arte como extensão plena da pluralidade individual de nós
mesmos. Qualificá-lo está longe de ser uma opção baseada no gosto ou na
preferência de cada um. Este é o filme maior e o filme universal, obra-prima
suprema em termos técnicos e onde as suas formas narrativas são feitas dos mais
implacáveis e aterradores enigmas cujas soluções não existem à dimensão a que
conseguimos vulgarmente colocá-las. Esta Odisseia de Kubrick é o Júpiter,
impossível de habitar ou ser comparado ou igualado com outra coisa qualquer que conheçamos. É,
enfim, o produto acabado em movimento eterno e a representação perfeita daquilo
a que podemos considerar um cinema de todos como património comum da nossa globalidade
e insignificância no Universo.