maio 20, 2013
Amer, para lá do Giallo
No dia em que os planos perpétuos estão na janela encantada cabe aqui fazer a referência ao filme responsável pelo ciclo.
Foi Amer que contribuiu para que descobrisse para além do vulgo conhecimento do cinema Giallo e dos responsáveis pela sua fundação e existência. Este filme é a grande homenagem ao género, mas não se limita a ir por aí. Amer acrescenta à estética própria e temperada desse tempo algo novo e temperado há medida do nosso tempo e que se traduz numa intensidade mais terrorífica que joga na simultaneidade com a densidade da descoberta do sexo e com a frieza da morte começada pela contemplação do puro corpo e acabada no orgasmo mais violento. Apesar de usar excessivamente os elementos Giallo, que adornam todo o filme ao máximo feito quase como caricatura, o filme ganha nele próprio uma vida única provocando uma singular angustia fruto da forma como nos são atirados os planos. E é neste plano que ao longo do filme nos apercebemos que o Giallo é aqui apenas uma plataforma para chegar mais perto das nossas emoções limitando-se a ser o móbil que vai alimentar a exacta narrativa capaz de devolver ao espectador a sensação de aperto e libertação, como quem inspira e expira, tal como no filme, ao mais alto nível. E é nestes momentos e nos breves intervalos que têm os gestos e os silêncios que antecedem cada climax sem vergonha que nos apercebemos que, no final de contas, já estamos longe e muitos alheados daquilo que se contou e mostrou nos filmes originais de Bava ou Argento e que estão na génese da inspiração para este filme.
Sem Amer, não conheceria os filmes que mostro no meu ciclo e sem os filmes do meu ciclo nunca poderia finalmente compreender e interpretar Amer à luz desse passado e da sua capacidade em ser um filme que acertou em cheio no presente.
maio 16, 2013
Malick não é deus
Mais do que ser um
realizador que se ama ou detesta, Malick é um daqueles em que se acredita ou
não, e tal como deus, cujo provas da sua existência nunca me foram mostradas,
também em relação a Malick tenho a mesma atitude. Não acredito. E não é por ter
filmado os dois últimos filmes como se fosse um deus que mostra a “verdade” que
eu passo a acreditar, quer em deus, quer em Malick. É verdade também que o
realizador é uma espécie de deus no sentido em que cria um universo próprio, à
sua imagem e reflexo do mundo, mas a forma como Malick faz cinema e como mostra
esse seu universo faz-me duvidar muito do seu génio.
Aprecio realizadores
que tenham uma marca e estilo que os distingue nessa arte de filmar tais como Darren
Aronofsky ou Paul Thomas Anderson, por exemplo. Embora se alimentem de algumas
características que marcaram o cinema de Hitchcock ou Kubrick, emanciparam-se
através de uma nova forma de olhar o cinema mais contemporânea e, à semelhança
de tais mestres, sem pretensiosismos baratos. Já em Malick é diferente. Esta
opção em filmar espécie-de-deus o milagre da vida reflecte-se na forma como
capta a ternura do céu, o sentimento da meteorologia, o apego do ar do vento e
dos silêncios e Malick ao descrever estes nadas com tamanha totalidade
transforma essa beleza em algo repetitivo e esgotante. Bastava parar um pouco e
agir em conformidade com a natureza e com os tempos do homem para ser diferente
e deixar de mostrar os personagens naquele exercício de improvisada levitação
entregues a si mesmos como se de extra terrestres autistas se tratassem. Todos
eles são aéreos, não daqui, embebidos por um tal belo das coisas simples e
naturais que os rodeiam mas que num repente, como que ocasionados por ímpetos
bipolares, são capazes de se submeter ao drama feitos vítimas do mal da humanidade num
rebaixamento ao tal deus às mãos de Malick a quem parecem dirigir as suas
narradas palavras ocas.
É verdade que capta
bem a essência de cada pormenor mas também é verdade que não permite qualquer
tentativa pelo entendimento de uma narrativa e de um anunciado propósito maior porque
despreza esse processo. A maneira como age perante os actores dando-lhes a já
famigerada liberdade de interpretação encerra a revelação plena daquilo que
para o realizador representam: meros objectos sem objectivo no meio de um
universo cheio de vazio onde existe apenas Malick para o compreender. E isso é
muito pouco.
maio 07, 2013
Da recruta ao fim do mundo
Penso que é muito
importante mantermos uma relação com o cinema igual àquela que mantemos com
qualquer outro tipo de arte. Não menosprezando elementos que possam ajudar a
nossa leitura, acho que o cinema só tem a ganhar com as interpretações que dos
filmes se fazem através do exercício de valorização da liberdade pessoal e
impressão critica alheia à própria ideia que o criador fez sobre a sua obra, na
mesma linha de atitude que tomamos em relação a um pintura de que cujo pintor
nunca ouvimos falar ou uma música cantada no mais estranho e imperceptível dialecto
mas que por qualquer razão toca-nos mais intimamente.
Desta forma, não me
interessa saber a razão que levou Kubrick a ter como cena inicial de Nascido
para Matar o momento em que a cabeça dos recrutas é rapada. Tenho para mim que
essa opção foi tomada no sentido de valorizar aquele que é o primeiro ritual de
iniciação ao serviço militar e que, naquele contexto particular, corresponde ao
começo de uma condenação das vidas dos “rapados” à morte ou à agonia de um
trauma perpétuo. Pois esse é precisamente o momento fundador de uma espécie de
iluminação do intelecto invertido. Mais do que se cortarem os cabelos, corta-se
com o passado de juventude, rebeldia e inocência e prepara-se o individuo,
através desta limpeza exterior, para uma lavagem cerebral interna muito mais
profunda. Sendo simples e evidente esta leitura, não posso deixar de considerar
inteligente e, no caso, oportuno esta sequência inicial.
E a partir dai, naqueles
primeiros 40 minutos de filme, Kubrick mostra de forma até empática (dado um
certo humor da forma) o quão abjecta é aquela recruta, as relações que se
estabelecem entre os camaradas, a preparação para a morte e o fundamento último
do homem-soldado como elemento puro de alienação e aniquilação que levará
indubitavelmente à pacificação do mundo. A encarnação dessa verdade cabe toda
no jovem “Gomer Pyle”, de principio absolutamente inapto para o serviço mas que
depois fica convertido ao mal, no pior dos homens e porventura o modelo exacto
da guerra precisa, mas que cuja revelação final dá sentido ao que de mais fatal
tem a guerra.
Ainda assim, apesar
de toda a humilhação e provocação justificativos para a preparação para a
guerra, e pese embora toda a retórica belicista e justiceira de desígnio
extraterrestre de quase divino face ao outro e ao próprio, essa recruta nunca
prepara verdadeiramente os jovens para a realidade e no palco de guerra, a
dialéctica entre bons e maus deixa de fazer sentido e é naquele palco de humanos
tocados todos pela desumanidade, que se impõem os mais verdadeiros valores da
humanidade através das escolhas mais difíceis. Kubrick capta muito bem o
confronto directo dos “guerrilheiros” com a morte, com a vida, com a perda e
com as decisões que na solidão com o inimigo têm de fazer para eles próprios, perdidos
na pátria inimiga e entregues à má sorte e à tragédia daquilo que afinal nunca
pensavam que pudesse existir. Com este filme Kubrick fez existir essa realidade
de forma brilhante e provou que nos lugares do fim do mundo não há vencedores e
nem vencidos e que todos são vítimas obrigados a seguir em frente na companhia
de um país que os abandonou.
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