março 30, 2013

O bom Oeste


Quer se goste ou não do género, é um facto indiscutível que dos westerns de Sergio Leone saíram algumas das imagens e dos momentos mais inesquecíveis do cinema. Da sua filmografia destacam-me O Bom, o Mau e o Vilão e Aconteceu no Oeste. Dois westerns brilhantes mas bastante diferentes.

No primeiro encontramos as velhas técnicas e as consolidadas formas tradicionalmente spaghetti e que lhe atribuem uma espécie de característica pop e isso aliado a uma boa história simples e crua resulta num filme que resiste muito bem ao tempo. O pop que confiro ao Bom, o Mau e o Vilão é, neste caso, uma característica positiva. É essa característica pop que vai dar o público ao género e é nessa característica que reside a fórmula que permite a revisitação do estilo como faz Tarantino ou Rodriguez perpetuando assim aqueles elementos mais puros e duros com suas doses de humor à mistura. Há duas cenas no filme que são marcantes: o duelo final entre os três - um absoluto clássico - e quando o Vilão chega ao cemitério e começa numa correria desenfreada à procura da campa dourada ao som de Ecstasy of Gold de Morricone. Grande momento.

Em Aconteceu no Oeste perde-se esse tom pop mas ganha-se mais filme na sua vertente mais épica. Aconteceu no Oeste é mais complexo e verdadeiro, mais sério e de estilo mais maduro. E tecnicamente não se lhe pode apontar um defeito, é irrepreensível. No início, a cena da espera do comboio até aparecer Bronson com a sua harmónica é suprema. Aliás, a apresentação das personagens nos filmes de Sergio Leone é qualquer coisa de ficar para a história. Claudia Cardinale desempenha aqui o papel da mulher do povo que pode ser entendida como a primeira matriarca do Oeste e Henry Fonda que é absolutamente icónico faz-nos crer que os homens de olhos azuis e doce tez também podem ser os maus da fita. É um filme de grandes planos e de grandes personagens que traçam os cenários do Oeste de forma memorável.

Um apontamento para a música. Morricone que musicou os mais variados filmes, sendo dos westerns italianos uma parte muito importante, dá uma outra dimensão a estes filmes em particular através da banda sonora. Podemos até afirmar que aquelas músicas não são apenas banda sonora para os filmes, elas poderiam ser a banda sonora para as nossas vidas.

março 25, 2013

Laranja Mecânica


Na sala grande a meia sala estava pronta. A cinemateca de Lisboa feita máquina do tempo mostra na fita já meio estragada o grande filme que o grande ecrã faz ainda maior. No começo, se não o conhecesse e se fechasse os olhos diria que estava perante um filme de ficção científica, uma coisa de outra dimensão, e o engraçado é que até faz sentido entender-se este filme desta forma. Mas eu conheço muito bem aqueles acordes iniciais e eu tenho os olhos bem abertos para ser confrontado com aquelas cores que abrem Laranja Mecânica seguidas do olhar furioso e desafiante de Alex enquanto bebe o leite e se apresenta. Prepara-nos para a ultraviolência, para a sua história e para a verdade de uma realidade que, no fim de contas, não é assim tão bizarra quanto parece.

É de forma brilhante que começa esta obra-prima de Stanley Kubrick e daqui para a frente cada detalhe é pensado e feito em função de uma ultradimensão acompanhada pelo grande Ludwig van através das mais variadas sintetizações executadas por Carlos. Há toda uma consciência estética em Kubrick que não vejo igual em nenhum outro realizador e que resulta num autêntico elogio à arte. E esta estética de substância agressiva e provocatória está presente em todos os sentidos. Vemo-la na caracterização insólita dos cenários, na descrição das situações e no desenvolvimento das personagens, na utilização dos elementos irónicos, cómicos e dramáticos na linguagem e na forma como se encaixam os planos e a própria narrativa proposta no livro de Burgess e que deriva para uma questão relevante. Se por um lado apresenta a ideia de que o ser humano não deve ser tratado como uma máquina e que não se lhe deve ser negada a capacidade de escolha, por outro lado, é o Alex de Kubrick que, em todo o seu esplendor, diz-nos que essa liberdade pode não se compatibilizar com a sociabilidade na comunidade e até, em último caso, pode pôr em causa toda uma estrutura de sociedade.
No grande final, a cura dá-se como por milagre sob a forma pura da nona, numa iluminação feroz que devolve a vitória ao vilão e que remete para a inevitabilidade do pecado ou a derradeira glória do homem livre tornada espectáculo.

Levei dias a pensar sobre o que faz de um filme perfeito ou o melhor de todos os tempos. E bem, fazemo-lo cada um de nós. Dizer que Laranja Mecânica é o melhor filme de sempre é uma provocação, mas é a minha perfeita provocação.

março 20, 2013

Os clássicos que não vimos

A forma como vemos o cinema mudou. Mudou a partir do momento em que desapareceram as grandes salas de cinema que passaram a ser integradas na estrutura dos centros comerciais; mudou com as plataformas on-demand ou streaming e mudou com a pirataria que foi fazendo com que o nível de exigência na qualidade do produto tenha baixado. O facto de também vivermos em crise faz com que a expectativa baixe e se adoptem estes mecanismos mais simples ou imediatos para atingir a satisfação do cinema. Por outro lado, a facilidade com que conseguimos aceder a qualquer conteúdo em qualquer lugar, desde que munidos do dispositivo adequado, torna o produto audiovisual um mobilizador activo das massas, mais universal e mais democrático e isso tem pontos positivos.
Contudo, bem sabemos que nada substitui a sala de cinema e é aí que continuamos a querer ver aqueles filmes que aguardamos com maior expectativa. Apesar de sermos todos cúmplices das facilidades que nos oferece a pirataria, bem sabemos que o filme é das salas, a alto e bom som, com ou sem pipocas, mas é ali naquele lugar de frente para o grande ecrã que conseguimos sentir melhor as grandes emoções.
Sendo o cinema um palco de grandes emoções, é também ele um espaço de memória e em boa hora se decidiu repor o Vertigo e o Psycho. Abriu-se com isto um precedente importante. A verdade é que as pessoas interessam-se pelo bom passado e quem nunca teve oportunidade de ver no grande ecrã os grandes clássicos, alimentou sempre o desejo de os ver, porque em sala é diferente e é melhor. A noticia de que a Columbia Tristar Warner irá iniciar um programa de Sessões Clássicas é uma grande noticia. E que melhor começo do que Taxi Driver que, na minha humilde opinião, é simplesmente um dos melhores filmes de todos os tempos. Em versão restaurada digitalmente, na melhor qualidade possível, muito melhor até do que quando o filme estreou em 76, enfim, coisas que só esta Era podia permitir.
Há muito tempo que as grandes salas desapareceram e com elas o frenesim das grandes estreias e das grandes estrelas. Já não é possível recriar todo esse ambiente e todo esse tempo, mas do passado se fez o presente e resta-nos os filmes para olhar até sempre.

março 14, 2013

O vento de Béla Tarr


Confesso que vi o Cavalo de Turim em dois ou três dias, porque adormeci. Não imputo total responsabilidade ao filme porque provavelmente também pesou o cansaço dos meus dias, mas quando acabei de o ver escrevi um poema que não cabe aqui reproduzir. Mas foi isto que o filme meu deu, um poema. E nos dias que correm, com uma desinspiração de versos latente, isso só pode ser uma coisa boa. E o Cavalo de Turim foi uma coisa boa que aconteceu o ano passado.
Não será digerível para a maioria das pessoas e quem não lhe reconhece o valor ou o mérito não merece castigo. É uma questão de gosto, sensibilidade ou disponibilidade e isso não se discute. É verdade que ao longo do filme está sempre a passar a mesma música, é verdade que somos confrontados sempre com as mesmas tristes rotinas uma vez e outra e outra vez, é verdade que há poucas falas e que há sobretudo silêncios e vento, muito vento. Confrontados com esta afronta aos nossos sentidos que pode fazer exasperar até os mais pacientes levando à desistência do filme, é bom reconhecer que também nós, confrontados diariamente com os mesmos problemas, com os mesmos acordares, com os mesmos hábitos e despertares, com as mesmas pessoas ou com os mesmos lugares, não desistimos das nossas vidas. Nós continuamos, uns mais conformados do que outros, mas continuamos. A nossa vida é em si um acumular de rotinas e excessos de desmedidas banalidades, apenas mudam os objectos a que nos agarramos e que determinam as nossas prioridades. 
Sem grandes pretensões, tal a vida dos mais simples, o Cavalo de Turim de Béla Tarr manifesta a pureza do objectivo, a luta pela sobrevivência, um cuidar até à morte daquilo que nos é querido e uma homenagem a quem resiste contra a ventania.

março 08, 2013

O psicopata de Hitchcock


Falei há tempos do terror por meio da personagem-caricatura de mal, isto para dar significado à multiplicidade do objecto do género. O terror apareceu com o nascimento destas personagens míticas e toda a sua envolvência mística. Mais tarde apareceu a natureza com suas gigantes criaturas, seres de outros planetas, mutação da raça humana e a perversão fácil dos serial killers das massas como Freddy, Jason, Michael e Leatherface. Porém, há ainda essa espécie de terror que usa a máscara do homem comum para esconder a verdadeira face obscura e traumatizada que dá corpo ao que se pode entender por loucura e que resulta no retrato do psicopata.

Norman Bates é um psicopata. Ele vive em função de estranhas obsessões resultantes de traumas da juventude, tal Ed Gein, e acrescenta ao horror das suas opções, a negação da morte da mãe preservando física e materialmente nele próprio a continuação da sua vida, que obviamente não passa de um embuste. É nesta complexidade que está mergulhada a existência de Norman Bates que não distingue o que é moralmente correcto ou errado vivendo num labirinto de hábitos macabros e verdades subvertidas, pois é disto que os psicopatas são feitos.

E é para este universo que Hitchcock nos conduz. Mesmo que do lado do psicopata esteja uma pessoa aparentemente simples, simpática e inofensiva, ele não é por isso menos perigoso e Hitchcock faz desta personagem e deste caso um filme de terror. Cada plano e cada lance de imagem desperta um mistério que vamos deslindando à medida que o psicopata se revela como naquele buraco na parede por onde ele espreita, naquela morte prematura e cruel no chuveiro, no motel imutável com os bichos embalsamados ou naquela casa assombrada onde reside o derradeiro segredo. Ao longo do filme, vamos ganhando consciência sobre o pesadelo deste psicopata, mas a verdade é que no final vemos que não estamos preparados para a revelação bizarra de Norman Bates.
Este filme de Hitchcock é um exemplo da sua tenacidade e coragem. Em Psycho, ele fez-nos ouvir o medo e deu-nos um susto para onde olharmos. Em grande plano.

março 04, 2013

O taxi driver fala comigo

Quando Travis pergunta you talkin’ to me?, ele na verdade está a provocar-nos. Ele está a perguntar se estamos a falar com nós mesmos, tal como ele o está a fazer. Não se trata de qualquer personagem imaginária, alucinação ou loucura. É bem real. Através do filme, esta personagem pergunta-nos até quando vamos ficar calados, até quando vamos ficar sem fazer nada, até quando vamos aguentar toda a injustiça do mundo, até onde suportaremos o silêncio do outro (o próprio) perante o que o rodeia e até quando esse outro submisso vai continuar a dizer-nos o que fazer ou não fazer...
O taxi driver é o homem comum que circula nesta vida e que tem a capacidade para tornar-se um herói. Ele é O herói. E o táxi driver finalmente compreende que a sua insignificância não o pode condenar à apatia. É esta tomada de consciência que dá o significado ao statement de Travis. Ele agora já compreende e age para livrar o mundo da escumalha que ele entende por aqueles que vivem da exploração dos outros seres humanos. Tem razão. E Travis tem finalmente coragem para olhar nos olhos das pessoas e confrontá-las com a sua realidade. Ele reconhece a beleza no mundo e esforça-se por amar a Mulher; ele quer humanizar os indignos e convertê-los para o Mundo; ele até quer entender a Politica e acreditar no governador, mas é genuíno e verdadeiro demais para isso.
No fim, ele sabe que tem de ir mais além e decide por isso tornar-se um revolucionário urbano que acredita que por salvar uma vida consegue salvar um mundo inteiro. E fê-lo.