maio 07, 2013

Da recruta ao fim do mundo


Penso que é muito importante mantermos uma relação com o cinema igual àquela que mantemos com qualquer outro tipo de arte. Não menosprezando elementos que possam ajudar a nossa leitura, acho que o cinema só tem a ganhar com as interpretações que dos filmes se fazem através do exercício de valorização da liberdade pessoal e impressão critica alheia à própria ideia que o criador fez sobre a sua obra, na mesma linha de atitude que tomamos em relação a um pintura de que cujo pintor nunca ouvimos falar ou uma música cantada no mais estranho e imperceptível dialecto mas que por qualquer razão toca-nos mais intimamente.

Desta forma, não me interessa saber a razão que levou Kubrick a ter como cena inicial de Nascido para Matar o momento em que a cabeça dos recrutas é rapada. Tenho para mim que essa opção foi tomada no sentido de valorizar aquele que é o primeiro ritual de iniciação ao serviço militar e que, naquele contexto particular, corresponde ao começo de uma condenação das vidas dos “rapados” à morte ou à agonia de um trauma perpétuo. Pois esse é precisamente o momento fundador de uma espécie de iluminação do intelecto invertido. Mais do que se cortarem os cabelos, corta-se com o passado de juventude, rebeldia e inocência e prepara-se o individuo, através desta limpeza exterior, para uma lavagem cerebral interna muito mais profunda. Sendo simples e evidente esta leitura, não posso deixar de considerar inteligente e, no caso, oportuno esta sequência inicial.
E a partir dai, naqueles primeiros 40 minutos de filme, Kubrick mostra de forma até empática (dado um certo humor da forma) o quão abjecta é aquela recruta, as relações que se estabelecem entre os camaradas, a preparação para a morte e o fundamento último do homem-soldado como elemento puro de alienação e aniquilação que levará indubitavelmente à pacificação do mundo. A encarnação dessa verdade cabe toda no jovem “Gomer Pyle”, de principio absolutamente inapto para o serviço mas que depois fica convertido ao mal, no pior dos homens e porventura o modelo exacto da guerra precisa, mas que cuja revelação final dá sentido ao que de mais fatal tem a guerra.

Ainda assim, apesar de toda a humilhação e provocação justificativos para a preparação para a guerra, e pese embora toda a retórica belicista e justiceira de desígnio extraterrestre de quase divino face ao outro e ao próprio, essa recruta nunca prepara verdadeiramente os jovens para a realidade e no palco de guerra, a dialéctica entre bons e maus deixa de fazer sentido e é naquele palco de humanos tocados todos pela desumanidade, que se impõem os mais verdadeiros valores da humanidade através das escolhas mais difíceis. Kubrick capta muito bem o confronto directo dos “guerrilheiros” com a morte, com a vida, com a perda e com as decisões que na solidão com o inimigo têm de fazer para eles próprios, perdidos na pátria inimiga e entregues à má sorte e à tragédia daquilo que afinal nunca pensavam que pudesse existir. Com este filme Kubrick fez existir essa realidade de forma brilhante e provou que nos lugares do fim do mundo não há vencedores e nem vencidos e que todos são vítimas obrigados a seguir em frente na companhia de um país que os abandonou.

3 comentários:

  1. Concordo inteiramente. Um dos pontos altos da genial carreira do Kubrick. Também interpreto o início dessa forma. Estas palavras já me deram vontade de rever o filme...

    Abraço,
    Rafael Santos
    Memento mori

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  2. De acordo também. E aqui estão as principais ideias e temáticas (num belíssimo texto, a propósito) deste grande filme de Kubrick (mais um). Já agora, escrevi isto sobre o filme: http://caminholargo.blogspot.pt/2012/10/full-metal-jacket-1987.html.

    Cumprimentos,
    Jorge Teixeira
    Caminho Largo

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  3. O género da guerra foi um dos últimos porque me interessei em cinema, em miúdo nunca me senti atraído, depois comecei a ver o Platoon, Apocalypse Now e claro este Full Metal Jacket e mudei logo de ideias.

    Totalmente de acordo também.

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