Penso que é muito
importante mantermos uma relação com o cinema igual àquela que mantemos com
qualquer outro tipo de arte. Não menosprezando elementos que possam ajudar a
nossa leitura, acho que o cinema só tem a ganhar com as interpretações que dos
filmes se fazem através do exercício de valorização da liberdade pessoal e
impressão critica alheia à própria ideia que o criador fez sobre a sua obra, na
mesma linha de atitude que tomamos em relação a um pintura de que cujo pintor
nunca ouvimos falar ou uma música cantada no mais estranho e imperceptível dialecto
mas que por qualquer razão toca-nos mais intimamente.
Desta forma, não me
interessa saber a razão que levou Kubrick a ter como cena inicial de Nascido
para Matar o momento em que a cabeça dos recrutas é rapada. Tenho para mim que
essa opção foi tomada no sentido de valorizar aquele que é o primeiro ritual de
iniciação ao serviço militar e que, naquele contexto particular, corresponde ao
começo de uma condenação das vidas dos “rapados” à morte ou à agonia de um
trauma perpétuo. Pois esse é precisamente o momento fundador de uma espécie de
iluminação do intelecto invertido. Mais do que se cortarem os cabelos, corta-se
com o passado de juventude, rebeldia e inocência e prepara-se o individuo,
através desta limpeza exterior, para uma lavagem cerebral interna muito mais
profunda. Sendo simples e evidente esta leitura, não posso deixar de considerar
inteligente e, no caso, oportuno esta sequência inicial.
E a partir dai, naqueles
primeiros 40 minutos de filme, Kubrick mostra de forma até empática (dado um
certo humor da forma) o quão abjecta é aquela recruta, as relações que se
estabelecem entre os camaradas, a preparação para a morte e o fundamento último
do homem-soldado como elemento puro de alienação e aniquilação que levará
indubitavelmente à pacificação do mundo. A encarnação dessa verdade cabe toda
no jovem “Gomer Pyle”, de principio absolutamente inapto para o serviço mas que
depois fica convertido ao mal, no pior dos homens e porventura o modelo exacto
da guerra precisa, mas que cuja revelação final dá sentido ao que de mais fatal
tem a guerra.
Ainda assim, apesar
de toda a humilhação e provocação justificativos para a preparação para a
guerra, e pese embora toda a retórica belicista e justiceira de desígnio
extraterrestre de quase divino face ao outro e ao próprio, essa recruta nunca
prepara verdadeiramente os jovens para a realidade e no palco de guerra, a
dialéctica entre bons e maus deixa de fazer sentido e é naquele palco de humanos
tocados todos pela desumanidade, que se impõem os mais verdadeiros valores da
humanidade através das escolhas mais difíceis. Kubrick capta muito bem o
confronto directo dos “guerrilheiros” com a morte, com a vida, com a perda e
com as decisões que na solidão com o inimigo têm de fazer para eles próprios, perdidos
na pátria inimiga e entregues à má sorte e à tragédia daquilo que afinal nunca
pensavam que pudesse existir. Com este filme Kubrick fez existir essa realidade
de forma brilhante e provou que nos lugares do fim do mundo não há vencedores e
nem vencidos e que todos são vítimas obrigados a seguir em frente na companhia
de um país que os abandonou.
Concordo inteiramente. Um dos pontos altos da genial carreira do Kubrick. Também interpreto o início dessa forma. Estas palavras já me deram vontade de rever o filme...
ResponderEliminarAbraço,
Rafael Santos
Memento mori
De acordo também. E aqui estão as principais ideias e temáticas (num belíssimo texto, a propósito) deste grande filme de Kubrick (mais um). Já agora, escrevi isto sobre o filme: http://caminholargo.blogspot.pt/2012/10/full-metal-jacket-1987.html.
ResponderEliminarCumprimentos,
Jorge Teixeira
Caminho Largo
O género da guerra foi um dos últimos porque me interessei em cinema, em miúdo nunca me senti atraído, depois comecei a ver o Platoon, Apocalypse Now e claro este Full Metal Jacket e mudei logo de ideias.
ResponderEliminarTotalmente de acordo também.