fevereiro 17, 2015

Os relógios que Jodorowsky perdeu eram aqueles que Dali via na areia

O filme Duna, tal como projectado e idealizado por Jodorowsky, foi o maior filme de todos os tempos sem no entanto nunca ter visto a luz do dia. Mas a verdade é que é na escuridão que a grandeza se move e é nas grandes inexistências da história que se definem as maiores certezas. Leva-nos a perguntar quantos projectos não terão ficado na gaveta dos grandes estúdios por motivos secundários à própria criação ou arte...
Talvez o fracasso de traduzir em matéria a ideia conceptual e espiritual de Duna represente aqueles que são os verdadeiros limites do cinema. Através do exemplo de Duna, chegamos à conclusão de que a expressão do intelecto, a que chamamos arte, mais não é do que o produto do possível e que está tremendamente condicionado pelo pensamento dominante e politicamente correto. Mas não só. Pôr em prática um projecto como o de Duna, mantendo-o da maneira e fiel à visão inicial de Jodorowsky, é uma coisa tão maravilhosamente irrealista como querer abolir a fome e a guerra do mundo. É possível idealizá-lo mas difícil de implementar. O problema é sempre o mesmo, o de que é o Homem, com as suas virtudes e defeitos, que está responsável por pôr em prática os seus sonhos e é durante essa tentativa de concretização que se vê confrontado com os seus demónios e fantasmas que mais não são do que fruto da sua racionalidade. Claro que esta condição nunca será impeditiva para o ser humano sonhar que foi o que Jodorowsky fez, sonhou surrealiazando de forma possivelmente tangível. Seria mesmo ele capaz de o fazer..? No fundo, ele queria fazer uma coisa muito simples, queria fazer o maior filme de todos os tempos, juntando à sua volta as pessoas mais talentosas e geniais do mundo, os tais guerreiros espirituais oriundos de vários quadrantes artísticos, para pôr em prática o mais ambicioso dos projectos e a verdade é que conseguiu chegar a eles e convencê-los disso, que eram guerreiros da História. Um Dali Imperador, Welles como barão, Jagger ou Gloria Swanson como umas divas a compor o set, desenhado por Giger e Moebius, escrito por O'Bannon e os Magma e os Pink Floyd a tornar tudo numa loucura psicadélica... com certeza o mais grandioso e audaz filme de todos.
Ficaremos sempre com a dúvida sobre que resultado final teríamos se Hollywood estivesse disposta a pagar um filme de vinte horas, mas uma coisa sabemos e que ficou provada nos anos seguintes: a de que Jodorowsky contribuiu decisivamente para abrir mentalidades e alargar os horizontes da ficção cientifica. Não ter sido feito este filme fez com que os outros todos se fizessem em seguida, com certeza com uma maior dose de pragmatismo e realismo, mas que sem a centelha de genialidade visionária de Jodorowsky não teriam sido a mesma coisa.


janeiro 23, 2015

Os amantes da ponte nova

Tão puros são os silêncios e as danças na ponte, cada maldade posta na parte de quem sofre na cidade. Tomara tudo ser tão lúcido como a noite em que na escuridão os espelhos correm no rio e os fogos na claridade espalham um pouco do deslumbre de outros tempos.
Amar é um descontrolo sem fronteiras nem horizonte mesmo quando se incendeiam as paredes com o teu nome. Toda a libertação e a desgraça dos amantes, todo o desapego cruel das formas comuns de amar, toda a timidez e a euforia do amor, num filme apenas.


maio 13, 2014

Afinal o cinema está debaixo da pele

O cinema não é mais do que a prática da originalidade estando por certo sempre ancorada na estimulação não linear dos sentidos. É este o cinema que nos acelera a batida, que nos envolve por dentro, que provoca o medo e devolve a angustia de quem por fim não sabe bem o que acabou de ver. E este é o filme, este é então o cinema de que mais gosto e que afinal estava aqui tão perto, como que debaixo da pele.
Alternativo, estimulante, composto, delineando a estranheza de uma tentação extra-terrestre que só podia ter corpo numa das terrestres mais belas, Scarlett Johansson. É logo desde o inicio que somos conduzidos para uma experiência nova onde nem cabem as referências a Kubrick ou Lynch tão eternos como esse passado e que aqui Glazer transforma em contemporaneidade através de um trabalho original, tão fino como denso, um pleno de suspense e terror de uma industrialidade vinculada ao corpo e ao som rasgado da banda sonora que ajuda a conferir grande intensidade a esta criação. É na repetição desses sons e dos caminhos que levam as vitimas humanas ao labirinto isolado e desnudo da predação, que está espelhado o toque de génio do realizador, tão imerso numa substância estranha que se define no esplendor incógnito de uma trama de erotismo e morte, sem prazer e sem gritos, de poucas palavras e um rito sempre igual mas cheio de objectivo. Atingir o objectivo em Debaixo da Pele é então um exercício feito quase sob hipnose, de forma meio delirada, surrealista, mas em simultâneo ligada à identidade de um espaço familiar. É interessante todo o cenário, cheio de propósito, um subúrbio escocês, como que no fim do mundo, um mundo perfeitamente esculpido às necessidades da sobrevivência extra-terrestre através da aniquilação da solidão masculina, ora muito viril e ignorante, ora carente por distância e exclusão, o que faz por, no fim, mostrar ao alien o que é a humanidade e que é por um lado protectora e sensível, mas por outro, ofensiva e abusadora.
Filme do ano, independente, independentemente do que digam, esta é a nova ficção cientifica do século sem grandes artifícios ou artimanhas espaciais, um pedaço de cinema magistral sem defeito que se aponte ou qualidade que se consiga verbalizar na perfeição. Enfim, um objecto intimo e permanente tal o sangue que nos corre a todos por debaixo.

fevereiro 28, 2014

Uma grande beleza

É bela a ideia de ver deitado o mar no embarque para a história. Durante mais de duas horas fui romano ou como Jep um mundano, rei da mundanidade. Que sonho é este o da mundanidade? Haverá pois na decadência da sociedade o melhor poema ou quadro que se possa fazer. Haverá sempre no beco mais sujo o mais perfeito cruzamento com a memória, esse espelho de reflexos que um dia couberam no tempo passado e que eternamente resistem à passagem. Haverá sim na degradação da expressão intelectual uma fonte inesgotável de palavras ocas que gritam aos sítios por uma revolta. Haverá nesta selva selvagem de ruínas as penumbras capazes de nos salvarem. Jep deambula por entre os espaços como se fosse um morto-vivo, como se pairasse trazendo o último julgamento da humanidade por mais cruel que esse seja. Jep percorre tudo, tão vivo e tão morto em toda a sua mobilidade como as obras primas revisitadas e cheias de imortalidade. Roma será certamente uma das derradeiras cidades simultâneas em todo o mundo, onde a história imutável cruza-se todos os dias com a volátil mundanidade que dirão decadente mas que é, por outro lado, inevitavelmente libertadora por clarificar o desígnio da actualidade, mesmo se tal conclusão remeter para uma profunda desilusão e desespero. Cada plano traz no focus da sombra de todas as pessoas uma melancolia plena cheia de presunção não mais do que plástica e por nada inocente na sua composição. A Grande Beleza, uma das peças contemporâneas mais completas da arte do filme enquanto produto de uma filmagem, de uma visão erudita e rupestre também, cheia de espírito e estilo europeu que no seu decorrer acaba por fazer uma inteligente critica aos dilemas e contrastes da sociedade deste tempo.

fevereiro 12, 2014

A vulva que derivou von Trier para um mesmo caminho

Quando às tantas no segundo capítulo Joe refere-se a uma das histórias de Seligman como a mais desinteressante que lhe contara até aí, já era evidente que não só essa história em particular mas também o filme começava a tornar-se geralmente desinspirado. É inevitável trazer a dúvida se esta versão cortada para as salas será muito diferente da versão completa e não censurada, a qual é assumida pelo realizador como sendo a definitiva do autor, mas a forma como o filme foi montado para se mostrar ao grande público acaba por afastar-nos de uma análise mais global do tipo filme-único, não fossem também as diferenças gritantes que encontramos do primeiro para o segundo capítulo.
Se na primeira parte Lars von Trier ousou com gosto explorando a perfeita história ninfomaníaca de Joe até chegar à idade adulta, já a segunda parte, encarregando-se de dar seguimento à perversão doentia da personagem, mais não afirma do que a sua decadência, a de Joe e a do próprio filme. Quero acreditar que era bem possível dar continuidade à inocência selvática da jovem Joe encarando sem rodeios o óbvio desencanto que trás a maturidade em qualquer circunstância, mas a verdade é que revelou-se mais do que evidente que a transição da idade capitulada no filme foi tão cruel para esta obra como o é para a própria vida e admitamos que há nisto uma grande coerência. O problema é que, apesar de reconhecer o génio de Lars von Trier, tenho sérias dúvidas de que está nesta coerência coincidente o fundamento para a degradação do filme. A verdade é que a segunda parte, como que partindo literalmente a força matriz que elevou a primeira, mais não faz do que expor sem gosto o progresso natural da regressão ao fim do mundo sexual. A forma chocante com que é mostrado este confronto com o presente ali sujo pelas telúricas experiências etéreas do orgasmo aos homens perigosos de desconcertantes vazios intelectuais, apenas faz o debate de Ninfomaníaca estéril e histérico, simplesmente provocador e tantas vezes sem grande nexo narrativo embora sempre esteta na sua forma. E assim, infelizmente desinspirado, tudo o que tinha de cativante na primeira parte se desmorona  na segunda através de lugares comuns feitos de sexo barato e deslavado, um manancial de todas as temáticas que fazem o tabu e a polémica e que se expõem depressa na chocante erecção ao ritmo da tradicional história das crianças no parque ou no nó vaginal descortinando o prazer através do espancamento passando ainda por uma incompreensível referência a Anticristo. Mais lamentável é chegar ao fim do filme e confirmar todo este desgaste cansado com a absurda e definitivamente previsível punch line do confidente Seligman que deu assim o pretexto ideal para Gainsbourg fugir do filme e porventura até libertar-se assim da já longa parceria com o realizador.
Apesar de tudo e no entanto, este é um filme que vale a pena. Referência justa ao despudor dos actores e a sempre conseguida integração de temas da música clássica que oferecem à peça os contrastes necessários à fortaleza da dialéctica mesmo que duvidosa em alguns momentos. Lars von Trier é dos únicos que actualmente tem a capacidade de exercer desafio a quem não se coíbe dessa tentação que é ser desafiado por ele. A sua obra continuará com certeza no trilho desconcertante, sempre muito plástico e muito visceral em simultâneo e sempre muito provador mesmo que com falhas e abusos retóricos desnecessariamente excessivos motivados quiçá por uma necessidade de afirmação face ao status quo da industria.

janeiro 28, 2014

Ela

Amor,
ontem vimos um dos melhores filmes da nossa vida. E já vimos centenas de filmes juntos e já sentimos por vezes tudo. Mesmo assim. O cinema nunca nos deixará de surpreender. O melhor é mesmo quando ficamos sem palavras, em que só um beijo seca no fim as lágrimas ficando depositadas ao sabor da saliva e quando ficamos assim sem saber o que dizer perante o silêncio deste presente. E há tanto presente no mundo, uma infinitude de coisas simples ou mais brutais que nos ajudam a compreender a felicidade em torno daquilo que esperamos continuar no futuro, nem que seja no milésimo de segundo seguinte e no seguinte e no seguinte... Se há uma ponta de egoísmo em nós quando projectamos coisas na nossa vida que pensamos ser as melhores independentemente de terceiros ouvindo apenas o que queremos ouvir, falando apenas quando queremos dizer alguma coisa e sentindo quando achamos ter a melhor disponibilidade para sentir, por outro lado é inegável que estamos munidos de uma generosidade maior por, no limite, decidirmos em função do outro e assim apaixonarmos-nos através desta luta eterna entre o que somos para nós e o que queremos ser para outra pessoa ou ter dessa outra pessoa. No fundo, todos procuramos a melhor forma de sermos felizes, nem que seja por imagens, nem que seja por ideias e vivê-las faz-me bem, ainda para mais tendo-as à pele que toca assim a tua. Talvez a principal razão de todas as zangas do universo esteja na falta de balanço, na perda de equilíbrio que tem na sua origem estas batalhas interiores, quase sempre perdidas à partida não deixando por isso de valer a pena serem travadas. Esta vale a pena, digo-te. É verdade que quando crescemos vamos deixando algumas coisas para trás, coisas que dão lugar a outras, outras que dão lugar a novas. Há em nós certamente um esforço grande em encarar as alterações da vida e aceitar as novidades que vão aparecendo por isso desculpa se tem alturas em que não lido bem com algumas coisas e me esqueço do quão bom é ter alguém tão importante na minha vida, como tu, alguém que cuide de mim, que me acaricie à noite e que me conforte ao longo do dia com o saber de estarmos ligados pela magia do pensamento. Será pois isto o amor, eu e tu, pessoas individuais de realidade que se ligam todos os dias e que vivem na certeza de que um dia hão-de morrer nunca uma para a outra, mas sim uma com a outra.
O teu,

dezembro 10, 2013

A Odisseia no Espaço

Foi na Pré-História que se colocaram os primeiros desafios ao Homem que tinha na Terra o seu único universo e não será ficção julgar que a Humanidade fez-se para o futuro a partir do momento em que o Homem descobriu a tool para conquistar e defender o território e para dominar o outro. Só a dominação pela força permitiu ao Homem evoluir-se ao longo dos tempos adquirindo a capacidade para dar o salto no tempo e conhecer novos mundos à medida que o meio o ia transformando também e que está bem reflectido no filme através dos vibrantes entardeceres naqueles vastos cenários paleolíticos. A tomada de consciência que resultará no tal salto evolutivo, quiçá motivada por uma qualquer força extraterrestre (aqui a ficção não terá necessariamente de ser tomada à letra), está na forma e na figura daquele que é porventura o momento mais clarividente e simbólico da história do cinema, aquele momento em que a primeira arma do homem é arremessada aos céus num grito-macaco dando lugar ao veiculo espacial em queda ascendente e que materializa uma outra distante conquista do homem ali descentrado num universo sem céu e sem horizonte.

Ao som do Danúbio, já o Planeta é um passado e encaminhados pela força magnética do misterioso Deus das estrelas já a busca pelos fundamentos fundamentais da raça humana impõe a Odisseia rumo ao desconhecido, para onde tudo começou e de onde tudo terminará um dia. No Espaço o diálogo é um acessório utilizado como instrumento que ajuda a perpetuar o mistério e cada movimento é um ícone soberbo de mestria composto de música e silêncio que nos eleva às profundezas da nossa estranheza. Tudo fica projectado sobre nós na forma desse bailado que ao longo da obra de arte vai lançando cada vez mais perguntas cujo fim não tem meio de devolver respostas lineares. Que força é essa que um dia nos deu a objectividade para cumprirmos as nossas capacidades mas que passados milhões de anos nos faz mover para o vazio mais obscuro sob o risco de nos mostrar a “verdade”? Que terror é esse o da infalibilidade electrónica e que, tal como nós, no fundo, apenas existe por se mover por objectivos maiores do que a própria sobrevivência? E como se define a sobrevivência num contexto onde todos os conceitos estão inquinados pelas expectativas materiais do intelecto intra-humano? 

Se a máquina serve para cumprir o desígnio imposto pelo próprio Homem, e se a confiança que lhe é programada para cumprir esse objectivo lhe dá a independência suficiente para no limite decidir sobre a vida humana, não será abusivo dizer que o momento em que o último sobrevivente desliga o supercomputador é de certa forma o momento em que ele desliga parte de si, aquela parte em que faz parte do processo de racionalidade de uma comunidade culta mas que à distância de milhares de anos está muito longe da verdade oculta que está para lá do entendimento do cosmos. Será pois a partir desse momento, que desta forma o homem regressa às origens, a um estado primitivo, sozinho e entregue ao destino que ali, já longe de 2001, vai-se concretizar na última viagem por um caminho de psicadélica glória, para lá do infinito e com todo o esplendor full of stars, rumo ao conforto da casa de Deus, pois não será de outra coisa aquele misterioso lugar onde o tempo avança para a morte à medida que quase simultaneamente já o corpo renasce para um presente final.


Na revisitação que fiz a 2001: Odisseia no Espaço, vejo agora claramente que este filme representa aquilo que define a Sétima Arte como extensão plena da pluralidade individual de nós mesmos. Qualificá-lo está longe de ser uma opção baseada no gosto ou na preferência de cada um. Este é o filme maior e o filme universal, obra-prima suprema em termos técnicos e onde as suas formas narrativas são feitas dos mais implacáveis e aterradores enigmas cujas soluções não existem à dimensão a que conseguimos vulgarmente colocá-las. Esta Odisseia de Kubrick é o Júpiter, impossível de habitar ou ser comparado ou igualado com outra coisa qualquer que conheçamos. É, enfim, o produto acabado em movimento eterno e a representação perfeita daquilo a que podemos considerar um cinema de todos como património comum da nossa globalidade e insignificância no Universo.

novembro 12, 2013

Uma imagem sem o filme


Que xadrez é este, Bergman? Qual aquele oceano e onde fica este paraíso de pedras? Mas que silêncio infinito guardará o silêncio destas peças? É estranho ver uma imagem de um filme sem saber qual o contexto, sem ter visto portanto o filme e tão pouco do que fala. O Sétimo Selo. Sempre me intrigou este título. Dizem que é uma obra-prima como quase todos os filmes do mestre, não duvido, mas não conheço, este e certamente muitos outros e também a verdade é que quanto mais se conhece a realidade mais longe estamos de conhecer tudo, seja tudo o que for, mesmo que seja nada ou a simples aparência da insignificância mais vaga e abstracta. Não será isso propriamente mau se for consciente a afirmação dessa condição e não feita puramente assente na deriva material do materialismo que nos aproxima uns dos outros e que nos dá tanto conhecimento mas que no fundo desvirtua a base elementar da convivência com o silêncio da natureza, da viva à mais morta e da nossa própria.
Quero pois olhar para esta imagem e sentir que através da sua configuração intelectual consigo atingir o estado espiritual térreo que preciso para interpretar as coisas simples. Pois hoje é dia de ser mais um dia simples, um dia em que estou farto deste ruído agreste que vem de fora. Hoje não quero ver imagens em movimento, não quero ouvir nada que não venha da minha cabeça e só quero imaginar que a minha única virtude é ser um ser que só se concretiza parando o movimento das coisas sem querer saber do resto. Hoje é o dia para visitar a minha ignorância sobre as coisas e apelar ao meu espírito de aventureiro desventurado que se perdeu no caminho da razoabilidade.
Será esta imagem a afirmação da racionalidade do homem através do movimento tabular sobre as coisas naturais? Serão estas as linhas com que se desenham os contornos do dialéctico mental versando à soberba humildade etérea da terra? Pensando bem, eu não quero respostas para esta imagem, muito menos procuro as respostas do autor que as concebeu. Só quero olhar para ela para sempre e não perceber nada da vida ou tentar esquecer que percebo alguma coisa dela, porque é não percebendo que eu neste momento sou completo e que sou útil à sociedade. É assim que eu agora sou e talvez é sendo desta forma que consiga melhor compreender o fundamento deste jogo da razão no confronto directo com o painel cinzento dos sentimentos. 

outubro 29, 2013

A gravidade depois de 2001

Gravity vai ficar marcado em mim como a melhor experiência em sala de cinema que já tive. No final, fiquei com curiosidade para saber se a versão normal traria o mesmo tipo de sensações e conclusões que aquelas vistas e tiradas naquele ecrã gigante, pois é inegável que a sala IMAX do Colombo proporciona uma experiência física diferente que, a meu ver, permite aproximar o espectador daquilo a que este filme se propõe. E quando falo em aproximar é quase no sentido literal do termo.
Em termos visuais, Gravity é um espectáculo colossal e magnânimo fazendo justiça ao extremo clima espacial. O trabalho na profundidade dos planos e a noção de velocidade na deriva, quer nas situações mais controladas ou nas mais descontroladas e aliado à forma como se encaixam os sons e a música está feito de forma notável. Não fossem as punch lines comercialoides da personagem de Clooney ou a necessidade de preencher o silêncio com outras linhas de diálogo desnecessárias e estaríamos aqui perante um filme maior, possível de chegar perto de 2001 já que é com este que se pode estabelecer alguma espécie de paralelismo, em termos estéticos e na fidelidade ao real do Espaço, claro.
Sendo verdade que em termos narrativos tudo aquilo que tem vindo a ser feito na ficção científica, incluindo este Gravity, continua a estar a anos-luz de 2001, ainda assim os aspectos da estória deste filme são abordados de uma forma que, à órbita e no olhar sobre a “mãe azul” e sob a infinitude espacial, atingem um inevitável nível filosófico que acaba por estar bem conseguido. Se a origem do Homem está naquele vazio tão total e complexo, é pois confrontado com esse vazio que o Homem acabará por encontrar as respostas mais simples para a sua sobrevivência. O desfecho é categórico nesse sentido, pelo que foi então na situação-limite da mais perfeita e derradeira solidão e na eminência do silêncio eterno, que Ryan Stone teve a epifania da sua vida que lhe permitiu no final ganhar de novo a gravidade.

outubro 28, 2013

A cena do chuveiro

Neste espaço onde pretendo trazer algumas das cenas de cinema que considero mais memoráveis estarão com certeza muitas daquelas que nos vêm logo à memória e que correspondem a filmes que marcaram a história. A recuperação de certas cenas será então um cliché ou mais um apontamento de banalidade dada a popularidade dessas imagens, não nego isso. Mas por outro lado nunca é demais rever e relembrar esses momentos, muitas vezes feitos de simplicidade, frutos do fait diver, feitos sem o propósito de tornar memorável, não mais sendo do que pedaços que complementam uma narrativa.
Neste caso relembrar a cena do chuveiro em Psycho é mais do que um cliché. Mas na perspectiva da análise e estudo da mecânica cinematográfica, esta revisitação é seguramente uma obrigação.

setembro 28, 2013

No início era o macaco

Eu não podia fechar este mês com a referência filmica a Kubrick. É verdade que as fotografias para a Look já anteviam qualquer coisa para o futuro, mas o cinema superou tudo. Fechar esta espécie de ciclo fotográfico de Kubrick com uma pequena parte da longa cena inicial de 2001 é mais do que merecido. Dirão que foi a partir de 2001 que Kubrick se fez Kubrick e de facto é bem verdade. Pode também afirmar-se que já antes, com Lolita e Dr. Strangelove, Kubrick foi trabalhando-lhe o génio mas em 2001, tal uma supernova, o realizador despertou e fez-se brilhar de outra maneira mudando para sempre o cinema.
Nesta cena em particular cabe aquela que será porventura a melhor transição da história do cinema, do passado para o futuro, um osso usado como primeiro instrumento de guerra para a nave espacial, símbolo da perfeita exploração do espaço, para lá do cosmos, para lá das fronteiras e de tudo aquilo que um dia julgámos ser impossível.

setembro 09, 2013

Blowup

Todas as palavras serão poucas para fazer justiça à totalidade de Blowup de Antonioni. Nem a cena que trago consegue reproduzir a ideia que gostava de transmitir. Mas, usando de um esforço que só este tipo de filmes pode merecer, vou tentar dizer alguma coisa. Aquilo que com certeza mais me fascina no cinema é a possibilidade que ele tem em reunir várias modalidades artísticas em função da ficção filmada. Desta forma, Blowup suporta este meu fascínio não sendo apenas um filme, mas sim uma conjugação plena de formas de arte que resultaram num filme de uma afirmação cultural que acaba por extravasar as fronteiras do tempo. Neste filme em particular é absolutamente brilhante o enquadramento da narrativa num modeling pop alternativo que se reflecte no guarda-roupa, na música, na cenografia e na construção da função do fotógrafo concebida como um escultor de imagens vivas. Se repararmos bem a imagem do poster original do filme parece um monumento, uma escultura tirada do momento em que o fotógrafo possui a modelo através da fotografia, imagem que remete até para o acto sexual. Há com certeza muitas cenas ou imagens que suportem melhor esta ideia que tiro do filme, mas vale a pena rebuscar a cena do concerto porque reflecte a preocupação séria em ancorar de realidade o filme. A cena acontece num sub-club britânico onde as pessoas que assistem ao espectáculo comportam-se como manequins mesmo perante a fúria das guitarras de Jimmy Page e Jeff Beck dos Yardbirds que depressa resolvem tornar o concerto num desconcerto generalizado tal a geração ali representada na mais perfeita extravagância, enfim, motivos muito singulares que servem de pano de fundo à inquietante busca pela verdade ou por aquilo que o fotógrafo julga ser a verdade.

agosto 26, 2013

Os gangues de Hollywood

Sofia Coppola é talentosa e depois de ter iniciado a sua carreira com The Virgin Suicides e Lost in Translation, quase que já nem é preciso pedir-lhe que faça mais nada pois por aí já não tem nada a provar. Por outro lado, o grau de exigência subiu tanto graças a esses dois primeiros filmes que não deixa sempre de ser com grande expectativa que aguardamos o novo filme.
O último, The Bling Ring, é um filme simples e básico, não requer aparente esforço de compreensão, mas lança através dessa simplicidade o desafio para um olhar mais crítico sobre a sociedade materialista onde vivemos, os ídolos que seguimos, os ídolos que são construídos e aquilo que à dita alta socialite diz respeito. Sendo The Bling Ring um filme baseado numa história real que se debruça sobre aqueles miúdos que em Beverly Hills usaram as casas de algumas celebridades como se de lojas em liquidação total se tratassem, a verdade é que de alguma forma acabamos por sentir compaixão por aqueles pequenos e mimados ladrões que usam as cabeças apenas para enfiar chapéus e o raciocínio para lhes combinar as cores. Muito embora esteja sempre presente essa consciência de opacidade desses personagens, há também uma tentativa de construção da sua razão muito directa e franca que faz com que até aceitemos os seus comportamentos dado sabermos que do outro lado está um determinado tipo de pessoas que parece só estar no mundo para ostentar no mediatismo o imediatismo de um mundo aparte que cria sentimentos como a ganância, superficialidade ou inveja, os quais eles acabaram por ser vitimas, ou seja, vitimas deles próprios.
Apesar de não ter o brilho dos primeiros filmes, The Bling Ring não deixa de ser mais uma prova da certeza de Coppola.

agosto 17, 2013

Travis looks in the mirror

No dia em que Robert De Niro faz 70 anos, trago aqui aquela que será uma das suas cenas mais memoráveis.
O filme Taxi Driver ficará para a história muito à custa de Travis Bickle, uma perfeita criação de De Niro que, embora não o tivesse oscarizado, deu-lhe seguramente o ímpeto para uma carreira de grandes representações ao longo das três décadas que se seguiram. Se O Padrinho II ou ainda antes Mean Streats serviram para o anunciar ao mundo do cinema, Taxi Driver confirmou em definitivo o seu talento.
Perante uma carreira de tamanhos sucessos, será sempre arriscado apontar um filme que consiga resumir toda a sua capacidade. Mas a verdade é que essa capacidade está estampada em todo o filme, e nesta cena em particular é através deste dito golpe de improviso que De Niro revela todo o génio fruto de um trabalho sério de commitment à personagem que o levou, por exemplo, a trabalhar como taxista durante um mês doze horas por dia para se preparar devidamente para Travis. Só através de muito trabalho é que se consegue improvisar sem comprometer a personagem ou o próprio filme.
Esta cena, que é como um episódio de marca da antologia visual do cinema e da história popular da sétima arte, reflecte, como no espelho para onde Travis olha, a importância do actor no filme e o papel que ele tem em transformar aparentes nadas naqueles tudos totais que ficam para sempre na nossa memória.

agosto 03, 2013

Some sunny day


...

So will you please say hello,
To the folks that I know,
Tell them I won't be long,
They'll be happy to know that as you saw me go
I was singing this song.

We'll meet again,
Don't know where, don't know when,
But I know we'll meet again, some sunny day.


Com certeza que quando regressarmos todos das férias traremos na bagagem boas experiências cinéfilas.
Regresso em breve com novidades.

julho 25, 2013

Refn não perdoa

Após ver aquele que será com certeza dos melhores filmes do ano, não consigo perceber a razão que motivou a indignação daqueles que assistiram à estreia do filme em Cannes. Talvez seja uma questão de ingenuidade da minha parte, mas se é verdade que Only God Forgives pode ser caracterizado pela violência, será ele mais violento do que qualquer outro filme de Tarantino, por exemplo? Certo é que neste, a opção pela deriva revivalista dos géneros ‘b’, faz com que aligeire a violência com os maneirismos próprios da história que conta. Já em Refn tudo é sério, sério demais para não ser levado a sério, o que já faz dele um caso que está longe de ser tomado como unânime à crítica, daí motivar divergentes opiniões que irão com certeza da perfeita veneração à mais profunda repulsa. Ainda assim e reconhecendo a dureza com que Refn nos confronta num todo formal violento e real, parece-me que indignação será sempre uma reação algo exagerada. Prefiro a veneração.
Será com certeza à custa da personagem de Ryan Gosling que é inevitável a comparação com Drive. À luz de Gosling, pode-se dizer até que este filme é uma espécie de Drive à tailandesa, mas Drive era no sentido lato mais romântico e digerível na sua premissa para além de ser esteticamente mais comedido. Neste Only God Forgives, Refn vai às profundezas do culto humano, penetra no lugar underground dos sentimentos mais crus e exibe todo o esplendor visual soturno de uma cidade do pecado entregue à divina justiça dos homens. Ao ritmo das músicas que representam na perfeição o temor e a contradição sobre o crime, Only God Forgives revela ser um monumento gigante, um monumento vivo de silêncios cheios, espaços densos e cores hipnotizantes oferecidas em câmara lenta e que através do primor da capacidade do realizador conseguem reflectir todos os acontecimentos incluindo aqueles que não cabem na narrativa.
Tão comum mas já tão longe de Drive, é também a orientalidade deste filme que dá-lhe o Tempo, oferece-lhe o paradoxo, incute o certo brilho sombrio na trajectória suja para o precipício, a verticalidade da sexualidade incapaz, o complexo maternal e o valor da família ou a escolha da amputação material para a aquisição dos sentidos. Only God Forgives é um desafio que não se diz e que nos deixa à margem e simultaneamente por dentro, livres e entregues às sensações múltiplas e à fórmula que permite o juízo dos justos e injustos num mundo sem perdão e que deus parece ter deixado ao abandono. 


julho 22, 2013

2 x 3 x 7 não são 42

É curioso ver que mais do que sensibilizar os espectadores para uma agenda oculta presente no filme The Shining, o documentário Room 237 - pelo absurdo das teorias apresentadas e de como são "provadas" - acaba por chamar a atenção única e exclusivamente para alguns erros de continuidade que afinal são comuns a todos os filmes, mas que aqui tendem a ser mostrados como tencionais e propositados. Nada mais retenho deste documentário, a par de uma ou outra curiosidade que poderá ter fundamento, como por exemplo, a possível provocação de Kubrick a Stephen King com a cor do carro, ou ainda a ideia de que o filme pode ser visto de trás para a frente com a respectiva sobreposição sobre a projecção normal do filme que é interessante mas que valerá mais pela piada que certas coincidências desses planos sobrepostos podem mostrar.
Admito que Kubrick é terreno fértil para diversas interpretações, tal como uma obra de arte que está sujeita à crítica subjectiva, mas neste caso em particular os fundamentalistas da conspiração não deverão ter sido alheios ao facto de a seguir às filmagens de Barry Lyndon o realizador ter supostamente entrado em contacto com profissionais da publicidade e marketing com especialidade na inclusão de mensagens subliminares nos seus produtos. Poderá ter sido aqui o ponto de partida para a especulação. Como artista da imagem e especialista supremo na arte de filmar, concedo que nada do que é visto nos filmes de Kubrick é feito ao acaso, mas daí a fazer-se a correspondência simbólica com o Holocausto, a missão Apollo ou o genocídio dos povos indígenas dos Estados Unidos já me parece algo rebuscado demais.
Assumindo o certo mistério que há em Kubrick, há que dizer, por paradoxal que pareça, que a decifração dos seus códigos não se pode resumir à aritmética mais ou menos elaborada daqueles que procuram na multiplicação das partes a soma de uma verdade lunática sobre a sua obra.

julho 14, 2013

De Palma a Passion

Passion tem coisas muito interessantes. Embora ligeiramente perverso esperava mais erotismo e sadismo sexual, mas talvez isso seja reflexo de um desejo praticamente inconfessável que eu tenho para mim, mas que foi provocado desde logo pela primeira cena. Não é que a inclusão de uma componente ainda mais sexual fosse acrescentar algo de mais extraordinário ao filme, mas é um facto que o apelo sexual que é lançado por Rachel McAdams suscita logo o desejo em vermos materializada em sexo aquela tensão que, com o evoluir do filme vemos, mais não é do que objecto de manipulação num mundo mais do que material roçando mesmo a obscenidade dados os princípios que estão aqui em causa. E esta provocação sexual não é um pormenor. Sendo a ambição profissional o que move as personagens, ela manifesta-se através da chantagem sexual que torna-se como que adjectivo central da história. E isto claro que leva à acentuada perversão da personalidade protagonizada por Noomi Rapace que se vê envolvida num emaranhado de desejos materializados nos seus sonhos e que se vão misturando com a realidade num processo de vertigem e indecisão da verdade de um crime anunciado e materializado por entre as sombras.

Brian De Palma faz aqui mais um filme diferente que merece ser olhado com atenção, embora inevitavelmente sujeito a critica. A aparente falta de profundidade no desenrolar da história e também alguma falta de dimensão às personagens não é mais do que o suporte certo para a representação de um determinado interior obsessivo do ser humano capaz de tudo em situações de crise. E a deriva pela singularidade de De Palma neste Passion faz-se sobretudo pela forma como está construída a segunda metade do filme, em que são claras as influências do noir americano ao giallo italiano, o que faz prova deste filme como um sinal de vitalidade de um grande realizador que não desiste de fazer algo inovador.

julho 07, 2013

A família Stoker

Talvez pelas exigências profissionais que me obrigam a uma certa organização do conteúdo de cinema, tenho o hábito da catalogação e classificação dos filmes que vejo. A classificação que faço daquilo que vejo, reservo para o foro privado servindo sobretudo para a minha memória futura e confesso que dos meus dez melhores filmes não entra nenhum da década de 90 ou do novo milénio e isso, se por um lado, pode traduzir uma certa resistência ao que de novo se faz face ao antigo, por outro lado, penso que vai ao encontro daquilo que entendo como a decadência das ideias ou a decadência na forma como se filma o filme. Não quero com isto negar que se faz bom cinema nos dias hoje. Apesar dessa decadência generalizada há excepções notáveis mas que, no entanto, o tempo lá dará o devido crédito, tal como muito provavelmente eu o farei, ainda mais do que o faço actualmente, preservando a minha coerência quase formal, mas de acordo com a minha actualidade perfeitamente justa, em integrar nas minhas preferências filmes com mais de 25 anos.
Desta forma, quando dou de caras com um filme que rompe a regra da mediocridade não consigo esconder a excitação e o entusiasmo. Stoker não será um filme para entrar no tal top 10 da minha vida, talvez por lhe faltar ainda o tempo para isso, mas é sem dúvida do melhor que vi nos últimos tempos. Intenso e genial na maneira de contar a trama, uma representação soberba de Mia Wasikowska, com a super-estrela Nicole Kidman também muito bem, quase como sempre. Esta é uma história familiar de crime e de paixões proibidas, de silêncios ocultos e memórias incertas, segredos inconfessáveis e revelações macabras. Mas para além de contar histórias o cinema serve também para mostrá-las e aqui cada plano é configurado à luz de uma estética brilhante que é construída em forma de requintes e pormenores perturbadores que são servidos pelas personagens principais, o que já é uma imagem de marca do realizador Chan-wook Park.


junho 29, 2013

Los Olvidados Buñuel

Uma dessas pérolas do século passado será com certeza Los Olvidados de Buñuel. Não terá sido apenas pela tentativa de acompanhar o neo-realismo italiano dos anos 40, mas sim, e para além disso, por trazer para o cinema uma visão mais provocante e sombria sobre a desumanização provocada pela pobreza através das maldades perpetradas pelas crianças, que mais não são do que vitimas da miséria que lhes abraça e, no fundo, reflexo da dureza do mundo adulto. A capacidade provocatória da confrontação intima desse mundo pobre sob o espectador é logo dada no início do filme com o close-up de um menino de cabelo e rosto sujos que bufa feito um touro para a câmara, ou quando Pedro atira um ovo directamente para a câmara.
Então paralelamente à questão sociológica, Los Olvidados apresenta-se também como uma extensão da estética surrealista de Buñuel, que encorpa o uso da psicologia freudiana, o uso simbólico dos animais e o uso assombroso da câmara lenta que tem o seu momento maior na sequência do sonho do menino, o que me leva a acreditar o quão brilhante, em termos dessa estética surrealista, poderia ser este filme se Buñuel tivesse integrado todas as sequências que supostamente fez e que por razões de produção não terão sido integradas.

junho 21, 2013

A procura pelo homem morto


Pese embora vivamos tempos em que a criatividade parece estar refém do puro imediatismo dos fenómenos virais ou que um maior profissionalismo do trabalho do génio dependa cada vez mais do lobby que se faça junto das elites da cultura, é um facto que a arte, enquanto manifestação livre da intelectualidade do homem, é o único instrumento capaz de se impor ao mundo e contrariar aquilo que é dado como estabelecido. Foi isso que aconteceu com a revolução cultural dos Estados Unidos nos anos 60 e foi fundamentalmente através da música que se deu uma alteração na forma como se via o mundo das ideias, facto que viria a influenciar as futuras gerações.
Essa ideia da arte como poder único de transformação de uma sociedade está presente na forma como a música de Sixto Rodriguez teve impacto na África do Sul e este caso em particular tem contornos muito especiais. Aconteceu que, sem qualquer tipo de intervenção do criador, que limitou-se a fazer o seu trabalho sem esperar retorno, ainda para mais de um sitio do outro lado do mundo, os sul-africanos da Cidade do Cabo, motivados por circunstancias politicas e sociais adversas, adoptaram-no como seu herói sem o conhecer, tendo apenas uma imagem de capa de álbum de Rodriguez feito profeta para admirar e bastando apenas as suas palavras e a sua música para encontrarem conforto e inspiração. E para mim é aí que reside o verdadeiro significado e poder da arte, ou seja, o dar sem procurar receber nada em troca, tal o amor.
Já nos Estados Unidos, poderá ter havido uma altura em que algo falhou no trajecto de Rodriguez para que ele não fosse justamente integrado no circuito daqueles que mudaram aquele nosso mundo, mas ao ver este filme apercebemo-nos que Rodriguez não vive amargurado ou frustrado com o passado. Ele foi o artista que quis ser e aquilo que achava que podia ser. Aliás, a forma como é encarado o sucesso na África do Sul é sintomático da forma inocente como olha a sua arte e das escolhas que fez preferindo fazer parte da working class hero que Lennon disse, mas que Rodriguez fez.
Assumindo que os 60 americanos corresponderam a uma altura da história que foi propicia à formação de uma cultura popular mais genuína do que aquela que vivemos actualmente, o caso de Rodriguez vem dizer que nem tudo correu bem e que mesmo nessa altura existiram pessoas que por razões de exclusão ou preconceito não foram tidas em conta, tal como acontece nos dias de hoje. Também não deixa de ser interessante que, da mesma forma que a informação serve para promover uma cultura de mediocridade, a mesma informação serve também para salvar a cultura e transformar o trabalho anónimo num fenómeno planetário capaz de, neste caso em particular, dar a Rodriguez a referência que agora julgamos como merecida. E é aqui que o cinema entrou com este filme Searching for Sugar Man que, não sendo muito complexo na tentativa de explorar mais as razões pelas quais a super-estrela Rodriguez nunca chegou a nascer, ajudou a compreender que não foi por Rodriguez ter estado morto que deixou de viver.

junho 15, 2013

"Terrível palavra é um NON"


A cena inicial de Non ou a Vã Glória de Mandar é provavelmente uma das melhores sequências da história do cinema porque representa a verdade do tempo, do tempo imenso maior do que qualquer plano, tal as aspirações do povo lusitano cujo mar serviu para dar a ilusão de grandeza a um país limitado a uma pequenez que as fronteiras naturais quiseram obrigar. E Oliveira mostrou que a árvore vista de diferentes planos oferece sempre uma perspectiva diferente tal os momentos da nossa História. A árvore é pois um facto que se foi consumando ao longo do tempo e a nação foi-se consumando com ela e para ela.
País de Viriato ao "orgulhosamente sós", sós contra os romanos e contra o mundo, fundado na negação da civilização e que depois despertou para a missão messiânica de governo do mundo, NON não trata pois de traçar o retrato da pátria lusa como primeira nação da Europa à luz das conquistas e vitórias militares, mas através da obstinação que levou às batalhas perdidas e que resumem a tragédia do nosso destino. Destino que foi o de dar novos mundos ao mundo por mares nunca dantes navegados, mas que encerrou a tragédia no desastre de Alcácer-Quibir de onde nasceu o mito, o mito tornado verdade. Na reconstituição dessa história estão aqueles que lutariam também numa guerra perdida, séculos depois de se ter a utopia na mão e o mundo no mar, o colonialismo e a guerra do ultramar já eram os sinais da decadência de um Império que teve um nome, mas que nunca foi, o Quinto.
No final, um soldado morre e, vindo do mar nublado, assomou encoberto o desejado dia que deu ao país a esperança de um novo mundo português libertado do delírio imperialista que afinal só serviu para dar à Língua um estatuto de património, sendo no entanto dádiva que não apaga a humilhação da história. No final, foi Sebastião que tomou o corpo de abril, regressando à nação agora sem império e sem orgulho, para devolver a glória que nunca conheceu. Mas em 74, já longe do mar e dos deuses, a glória mais não era do que paz, paz e liberdade.
Nesse Abril revolucionário, poderá ter havido uma altura em que pensou-se que era chegada a altura de finalmente enterrar o nosso rei, aquele rei-mito e personificação da salvação nacional. E se o 25 de abril trouxe a salvação sobre a ditadura, aos dias de hoje continuamos a olhar para a árvore, já noutro plano e com outra perspectiva, e vemos que a paz e a liberdade não trouxeram por si só o bem estar que almejávamos. A verdade é que Portugal vê-se agora sem território e nem autonomia, ocupado pela lei financeira que parece perpetuar a tragédia do nosso destino que julgámos um dia ter terminado. E assim, cansados e desgastados por este jugo que parece já ter 1000 anos, continuamos à espera que se faça cumprir o desígnio português sem no entanto fazermos ideia do que somos e do que queremos ser.

junho 10, 2013

Efeitos Soderbergh

Quando Soderbergh apareceu em meados dos anos 2000 com Traffic e em seguida com o filme Ocean's Eleven, ficámos com aquela sensação de que um realizador diferente tinha surgido para se distinguir dos outros através de uma narrativa cheia de estilo e com um ritmo próprio acompanhado por boas escolhas sonoras. Se depois, a adaptação do filme original de Tarkovsky, Solyaris, ou a realização de duas sequelas de Ocean's, possam ser entendidas como opções algo ousadas ou discutíveis, parece-me que é a partir do momento em que Soderbergh faz da luta de Che Guevara em Cuba uma espécie de telenovela mexicana que as dúvidas quanto à sua originalidade podem começar a ser colocadas.
Pois em Che, cujo único bem traz a representação de Benicio Del Toro, Soderbergh começa a derivar por lugares comuns e superficialidades que até aqui, agora vejo eu, iam sendo disfarçadas pelo tal estilo e pelas boas bandas sonoras que marcavam o ritmo. E é também a partir desta telenovela, que Soderbergh parece querer marcar uma agenda esquerda em que reflecte alguns dos problemas que podem advir do mundo em crise, e para isso usa temas polémicos através de formas pouco convencionais, mas que no fundo e vendo bem as coisas, são revestidas por uma capa de juízo cliché sem profundidade. E Soderbergh marcou esta sua agenda com os filmes Confissões de uma Namorada de Serviço, cuja actriz principal é uma actriz pornográfica especialista em anal, ou Contágio, que teve a particularidade de ter tido na altura uma campanha de marketing gigantesca e em que o cartaz anunciava um grande conjunto de actores que a produção teve a audácia de ir matando desde muito cedo ao longo desse filme. Ou seja, muita forma e pouco conteúdo.
Num desvario a um determinado mindset de Soderbergh, o realizador fez um Magic Mike, que não consigo perceber, e o último Efeitos Secundários antes de uma mais do que exigida paragem sabática que ainda deixou Behind the Candelabra, que parece-me ser um daqueles filmes à boa pinta de Soderbergh. Mas à medida que vamos vendo o último Efeitos Secundários, apesar de toda a fragilidade que está implícita na demonstração de cada personagem, há algo de perturbador e real, principalmente em Mara. E à medida que o filme avança e em que vamos percebendo que o que está aqui em causa é uma trama em torno do lobby farmacêutico, cuja leitura de interesse se estende até ao 9/11 que é referenciado com todo o propósito no filme, que vemos que a agenda esquerda de Soderbergh está de volta em forma mais amadurecida. Mas, lamentavelmente, no final, Soderbergh fez questão de nos fazer lembrar da sua falta de ambição e coragem e opta por um caminho não largo, mas estreito e apenas focado no desfecho da vingança pessoal esquecendo tudo aquilo que o filme ia anunciando. Se há situação em que a palavra frustração se pode aplicar, este é um desses casos.


maio 20, 2013

Amer, para lá do Giallo


No dia em que os planos perpétuos estão na janela encantada cabe aqui fazer a referência ao filme responsável pelo ciclo.
Foi Amer que contribuiu para que descobrisse para além do vulgo conhecimento do cinema Giallo e dos responsáveis pela sua fundação e existência. Este filme é a grande homenagem ao género, mas não se limita a ir por aí. Amer acrescenta à estética própria e temperada desse tempo algo novo e temperado há medida do nosso tempo e que se traduz numa intensidade mais terrorífica que joga na simultaneidade com a densidade da descoberta do sexo e com a frieza da morte começada pela contemplação do puro corpo e acabada no orgasmo mais violento. Apesar de usar excessivamente os elementos Giallo, que adornam todo o filme ao máximo feito quase como caricatura, o filme ganha nele próprio uma vida única provocando uma singular angustia fruto da forma como nos são atirados os planos. E é neste plano que ao longo do filme nos apercebemos que o Giallo é aqui apenas uma plataforma para chegar mais perto das nossas emoções limitando-se a ser o móbil que vai alimentar a exacta narrativa capaz de devolver ao espectador a sensação de aperto e libertação, como quem inspira e expira, tal como no filme, ao mais alto nível. E é nestes momentos e nos breves intervalos que têm os gestos e os silêncios que antecedem cada climax sem vergonha que nos apercebemos que, no final de contas, já estamos longe e muitos alheados daquilo que se contou e mostrou nos filmes originais de Bava ou Argento e que estão na génese da inspiração para este filme.
Sem Amer, não conheceria os filmes que mostro no meu ciclo e sem os filmes do meu ciclo nunca poderia finalmente compreender e interpretar Amer à luz desse passado e da sua capacidade em ser um filme que acertou em cheio no presente.

maio 16, 2013

Malick não é deus

Mais do que ser um realizador que se ama ou detesta, Malick é um daqueles em que se acredita ou não, e tal como deus, cujo provas da sua existência nunca me foram mostradas, também em relação a Malick tenho a mesma atitude. Não acredito. E não é por ter filmado os dois últimos filmes como se fosse um deus que mostra a “verdade” que eu passo a acreditar, quer em deus, quer em Malick. É verdade também que o realizador é uma espécie de deus no sentido em que cria um universo próprio, à sua imagem e reflexo do mundo, mas a forma como Malick faz cinema e como mostra esse seu universo faz-me duvidar muito do seu génio.
Aprecio realizadores que tenham uma marca e estilo que os distingue nessa arte de filmar tais como Darren Aronofsky ou Paul Thomas Anderson, por exemplo. Embora se alimentem de algumas características que marcaram o cinema de Hitchcock ou Kubrick, emanciparam-se através de uma nova forma de olhar o cinema mais contemporânea e, à semelhança de tais mestres, sem pretensiosismos baratos. Já em Malick é diferente. Esta opção em filmar espécie-de-deus o milagre da vida reflecte-se na forma como capta a ternura do céu, o sentimento da meteorologia, o apego do ar do vento e dos silêncios e Malick ao descrever estes nadas com tamanha totalidade transforma essa beleza em algo repetitivo e esgotante. Bastava parar um pouco e agir em conformidade com a natureza e com os tempos do homem para ser diferente e deixar de mostrar os personagens naquele exercício de improvisada levitação entregues a si mesmos como se de extra terrestres autistas se tratassem. Todos eles são aéreos, não daqui, embebidos por um tal belo das coisas simples e naturais que os rodeiam mas que num repente, como que ocasionados por ímpetos bipolares, são capazes de se submeter ao drama feitos vítimas do mal da humanidade num rebaixamento ao tal deus às mãos de Malick a quem parecem dirigir as suas narradas palavras ocas.
É verdade que capta bem a essência de cada pormenor mas também é verdade que não permite qualquer tentativa pelo entendimento de uma narrativa e de um anunciado propósito maior porque despreza esse processo. A maneira como age perante os actores dando-lhes a já famigerada liberdade de interpretação encerra a revelação plena daquilo que para o realizador representam: meros objectos sem objectivo no meio de um universo cheio de vazio onde existe apenas Malick para o compreender. E isso é muito pouco.


maio 07, 2013

Da recruta ao fim do mundo


Penso que é muito importante mantermos uma relação com o cinema igual àquela que mantemos com qualquer outro tipo de arte. Não menosprezando elementos que possam ajudar a nossa leitura, acho que o cinema só tem a ganhar com as interpretações que dos filmes se fazem através do exercício de valorização da liberdade pessoal e impressão critica alheia à própria ideia que o criador fez sobre a sua obra, na mesma linha de atitude que tomamos em relação a um pintura de que cujo pintor nunca ouvimos falar ou uma música cantada no mais estranho e imperceptível dialecto mas que por qualquer razão toca-nos mais intimamente.

Desta forma, não me interessa saber a razão que levou Kubrick a ter como cena inicial de Nascido para Matar o momento em que a cabeça dos recrutas é rapada. Tenho para mim que essa opção foi tomada no sentido de valorizar aquele que é o primeiro ritual de iniciação ao serviço militar e que, naquele contexto particular, corresponde ao começo de uma condenação das vidas dos “rapados” à morte ou à agonia de um trauma perpétuo. Pois esse é precisamente o momento fundador de uma espécie de iluminação do intelecto invertido. Mais do que se cortarem os cabelos, corta-se com o passado de juventude, rebeldia e inocência e prepara-se o individuo, através desta limpeza exterior, para uma lavagem cerebral interna muito mais profunda. Sendo simples e evidente esta leitura, não posso deixar de considerar inteligente e, no caso, oportuno esta sequência inicial.
E a partir dai, naqueles primeiros 40 minutos de filme, Kubrick mostra de forma até empática (dado um certo humor da forma) o quão abjecta é aquela recruta, as relações que se estabelecem entre os camaradas, a preparação para a morte e o fundamento último do homem-soldado como elemento puro de alienação e aniquilação que levará indubitavelmente à pacificação do mundo. A encarnação dessa verdade cabe toda no jovem “Gomer Pyle”, de principio absolutamente inapto para o serviço mas que depois fica convertido ao mal, no pior dos homens e porventura o modelo exacto da guerra precisa, mas que cuja revelação final dá sentido ao que de mais fatal tem a guerra.

Ainda assim, apesar de toda a humilhação e provocação justificativos para a preparação para a guerra, e pese embora toda a retórica belicista e justiceira de desígnio extraterrestre de quase divino face ao outro e ao próprio, essa recruta nunca prepara verdadeiramente os jovens para a realidade e no palco de guerra, a dialéctica entre bons e maus deixa de fazer sentido e é naquele palco de humanos tocados todos pela desumanidade, que se impõem os mais verdadeiros valores da humanidade através das escolhas mais difíceis. Kubrick capta muito bem o confronto directo dos “guerrilheiros” com a morte, com a vida, com a perda e com as decisões que na solidão com o inimigo têm de fazer para eles próprios, perdidos na pátria inimiga e entregues à má sorte e à tragédia daquilo que afinal nunca pensavam que pudesse existir. Com este filme Kubrick fez existir essa realidade de forma brilhante e provou que nos lugares do fim do mundo não há vencedores e nem vencidos e que todos são vítimas obrigados a seguir em frente na companhia de um país que os abandonou.

abril 30, 2013

Mamã e chora


Mamã poderia ter tudo para se assumir como um dos grandes filmes de terror dos últimos tempos, não fosse ter por voltas do meio do filme embarcado num enfabulado caminho sem retorno ao jeito do mais puro fauno do seu produtor del Toro. Mas o problema é que o pressuposto deste filme não é o d’O Labirinto do Fauno, esse sim um filme que cumpre aquilo a que se propõe. Se a principio estamos perante uma história com um ambicioso potencial de terror assente na perturbação psíquica de quem sofre anos de isolamento do mundo exterior, a partir do momento em que essa atormentada experiência toma a forma de uma misticidade básica sem limbo e sem susto ou profundidade, então aqui termina o tal pretenso filme de horror e começa mais uma daquelas fitas em que o único impacto a que se permite é o de embalar as mais radicais crianças. Esta espécie de disney negra não serve os amantes do terror, aqueles exigentes e que anseiam por coisas novas e que não se deixam levar por finais que puxam ao mais linear dos sentimentos mesmo que esse fim não seja marcado pela felicidade.

abril 18, 2013

Infames flamingos

Andei por dias deambulando por lugares grotescos de mau gosto e perversão mórbida tomada a boas doses de chocante cinema. Vários exemplos e diversos caminhos podem mostrar o êxito da provocação de baixo custo mas que invariavelmente atingem até os mais insensíveis olhos lesando aquilo que são todos os sentidos. Ora o sentido destas pérolas de pérfida infâmia resulta apenas no da exploração da decadência num exercício mais-que-concreto dos mais absurdos instintos da imaginação humana. O cinema-lixo, porventura o verdadeiro cinema do real, reveste-se da mais vulgar vulgaridade mostrando-nos não graciosas personas as quais a obscenidade com orgulho dizem ser delas para o mundo, invocando títulos tal como o The Filthiest Person Alive, como mostrou John Waters numa dessas fábulas do atrelado culto mal cheiroso americano.

Poderá ser possível tentar entender o fenómeno de Pink Flamingos à luz de uma qualquer razão lógica, contudo todo esse processo intelectual esbarra na realidade do filme e naquilo que é a prática de uma loucura sem nexo, mas que no entanto só estaria ao alcance de ser concretizada num país em pleno conflito social ressacado do amor livre e mergulhado numa guerra perdida do outro lado do mundo. À luz de uma explicação mais ou menos lógica, podemos mesmo concluir que lady Divine e todos aqueles doentes e acrobatas da repugnância que protagonizam o filme são como que filhos de Nixon, ele próprio a personificação do falhanço da responsabilidade e da decência. 
Nada mais a acrescentar. 

abril 10, 2013

As sombras do lobo mau


O cinema vive muito da história que é contada mas também da forma como é contada e mostrada, pelo que confesso que a dimensão visual de um filme, não sendo por si isoladamente um factor de revelação, é um factor muito importante na minha análise e gosto. Não é por si esse factor revelador da excelência que posso ou não atribuir a um filme uma vez que já vi grandes filmes sem prevalência nesse trabalho visual, mas que não deixam por isso de ser grandes filmes. Mas se a composição visual é bem engajada no filme então esta característica ganha um outro destaque e o filme com isso ganha na consideração que faço.
Com certeza que o ciclo noir americano atingiu a notoriedade que ainda hoje é reconhecida pelos imensos seguidores do cinema muito à custa da sua visualidade. Se caracterizarmos o género noir, este aspecto visual entra com todo o propósito em conjunto com outras características transversais, como por exemplo a femme fatale. Mas o que fez o noir foi a imagem, muito mais do que a história em si. Claro que se a narrativa não valer nada, de nada vale uma boa fotografia, mas há que reconhecer que foi o estilo da imagem que deu a identidade.

O filme A Sombra do Caçador (A Night of the Hunter, 1955) merece aqui a referência. Não sendo tipicamente noir no que respeita ao tema ou à forma como é contextualizada a trama, muito dele é escuro oferecendo dos melhores contrastes e composições fotográficas que se fizeram na altura. É que apesar de haver aqui uma certa deriva em relação àquilo que se pode considerar o mainstream da forma explorada no período mais áureo do noir, o facto de se conseguir transportar toda esta carga visual para uma história que bem se podia mostrar às crianças, ainda destaca mais o poder desta característica que torna-se, neste caso, e na simbiose com aquilo que conta, um facto que torna este filme como um dos melhores e mais singulares do género.

abril 04, 2013

A sede do mal ou o toque do diabo

Aos 26 anos Orson Welles realizou o seu primeiro filme que foi o seu legado, Citizen Kane. Tamanho êxito anunciava uma carreira brilhante, mas como é óbvio terá sido difícil acompanhar o grande sucesso. Poderá até haver quem diga que este filme amaldiçoou de certa maneira a sua carreira, um pouco à semelhança daquelas bandas one-hit wonder em que lançam um par de temas e que depois desaparecem. Mas não foi este o caso. Welles não desapareceu e, reconhecendo mesmo que ao longo da sua carreira possamos não encontrar grandes êxitos à dimensão de Citizen Kane, ele continuou a realizar e a interpretar em grande estilo.

O plano que trago é do filme Touch of Evil de 1958 que terá sido provavelmente o último grande filme noir da História. Considerando que é de facto um excelente filme, há uma coisa que desde cedo me atraiu nele e que é provavelmente a razão pela qual gosto tanto do filme: nem mais do que aquela personagem interpretada por Orson Welles. Mal vi Welles na pele daquele polícia alcoólico, velho, gordo e manco, a fumar charuto e a encher a boca de chocolates disse que estava ali um dos seus papéis mais emblemáticos. Há uma dimensão camaleónica em Welles que é impar e que, sempre à sombra de Citizen Kane, não é justamente valorizada. Pois na minha opinião, o que distinguiu Welles de outros actores seus contemporâneos foi essa sua muito própria capacidade de se transformar, foi a forma como ele conseguiu estabelecer uma química com o espectador através da sua presença física e pela intensidade e credibilidade que dava à personagem.
Em Touch of Evil, Orson Welles tinha 43 anos. Nunca é tarde e nem cedo demais para se ser o que tem de ser.



março 30, 2013

O bom Oeste


Quer se goste ou não do género, é um facto indiscutível que dos westerns de Sergio Leone saíram algumas das imagens e dos momentos mais inesquecíveis do cinema. Da sua filmografia destacam-me O Bom, o Mau e o Vilão e Aconteceu no Oeste. Dois westerns brilhantes mas bastante diferentes.

No primeiro encontramos as velhas técnicas e as consolidadas formas tradicionalmente spaghetti e que lhe atribuem uma espécie de característica pop e isso aliado a uma boa história simples e crua resulta num filme que resiste muito bem ao tempo. O pop que confiro ao Bom, o Mau e o Vilão é, neste caso, uma característica positiva. É essa característica pop que vai dar o público ao género e é nessa característica que reside a fórmula que permite a revisitação do estilo como faz Tarantino ou Rodriguez perpetuando assim aqueles elementos mais puros e duros com suas doses de humor à mistura. Há duas cenas no filme que são marcantes: o duelo final entre os três - um absoluto clássico - e quando o Vilão chega ao cemitério e começa numa correria desenfreada à procura da campa dourada ao som de Ecstasy of Gold de Morricone. Grande momento.

Em Aconteceu no Oeste perde-se esse tom pop mas ganha-se mais filme na sua vertente mais épica. Aconteceu no Oeste é mais complexo e verdadeiro, mais sério e de estilo mais maduro. E tecnicamente não se lhe pode apontar um defeito, é irrepreensível. No início, a cena da espera do comboio até aparecer Bronson com a sua harmónica é suprema. Aliás, a apresentação das personagens nos filmes de Sergio Leone é qualquer coisa de ficar para a história. Claudia Cardinale desempenha aqui o papel da mulher do povo que pode ser entendida como a primeira matriarca do Oeste e Henry Fonda que é absolutamente icónico faz-nos crer que os homens de olhos azuis e doce tez também podem ser os maus da fita. É um filme de grandes planos e de grandes personagens que traçam os cenários do Oeste de forma memorável.

Um apontamento para a música. Morricone que musicou os mais variados filmes, sendo dos westerns italianos uma parte muito importante, dá uma outra dimensão a estes filmes em particular através da banda sonora. Podemos até afirmar que aquelas músicas não são apenas banda sonora para os filmes, elas poderiam ser a banda sonora para as nossas vidas.

março 25, 2013

Laranja Mecânica


Na sala grande a meia sala estava pronta. A cinemateca de Lisboa feita máquina do tempo mostra na fita já meio estragada o grande filme que o grande ecrã faz ainda maior. No começo, se não o conhecesse e se fechasse os olhos diria que estava perante um filme de ficção científica, uma coisa de outra dimensão, e o engraçado é que até faz sentido entender-se este filme desta forma. Mas eu conheço muito bem aqueles acordes iniciais e eu tenho os olhos bem abertos para ser confrontado com aquelas cores que abrem Laranja Mecânica seguidas do olhar furioso e desafiante de Alex enquanto bebe o leite e se apresenta. Prepara-nos para a ultraviolência, para a sua história e para a verdade de uma realidade que, no fim de contas, não é assim tão bizarra quanto parece.

É de forma brilhante que começa esta obra-prima de Stanley Kubrick e daqui para a frente cada detalhe é pensado e feito em função de uma ultradimensão acompanhada pelo grande Ludwig van através das mais variadas sintetizações executadas por Carlos. Há toda uma consciência estética em Kubrick que não vejo igual em nenhum outro realizador e que resulta num autêntico elogio à arte. E esta estética de substância agressiva e provocatória está presente em todos os sentidos. Vemo-la na caracterização insólita dos cenários, na descrição das situações e no desenvolvimento das personagens, na utilização dos elementos irónicos, cómicos e dramáticos na linguagem e na forma como se encaixam os planos e a própria narrativa proposta no livro de Burgess e que deriva para uma questão relevante. Se por um lado apresenta a ideia de que o ser humano não deve ser tratado como uma máquina e que não se lhe deve ser negada a capacidade de escolha, por outro lado, é o Alex de Kubrick que, em todo o seu esplendor, diz-nos que essa liberdade pode não se compatibilizar com a sociabilidade na comunidade e até, em último caso, pode pôr em causa toda uma estrutura de sociedade.
No grande final, a cura dá-se como por milagre sob a forma pura da nona, numa iluminação feroz que devolve a vitória ao vilão e que remete para a inevitabilidade do pecado ou a derradeira glória do homem livre tornada espectáculo.

Levei dias a pensar sobre o que faz de um filme perfeito ou o melhor de todos os tempos. E bem, fazemo-lo cada um de nós. Dizer que Laranja Mecânica é o melhor filme de sempre é uma provocação, mas é a minha perfeita provocação.

março 20, 2013

Os clássicos que não vimos

A forma como vemos o cinema mudou. Mudou a partir do momento em que desapareceram as grandes salas de cinema que passaram a ser integradas na estrutura dos centros comerciais; mudou com as plataformas on-demand ou streaming e mudou com a pirataria que foi fazendo com que o nível de exigência na qualidade do produto tenha baixado. O facto de também vivermos em crise faz com que a expectativa baixe e se adoptem estes mecanismos mais simples ou imediatos para atingir a satisfação do cinema. Por outro lado, a facilidade com que conseguimos aceder a qualquer conteúdo em qualquer lugar, desde que munidos do dispositivo adequado, torna o produto audiovisual um mobilizador activo das massas, mais universal e mais democrático e isso tem pontos positivos.
Contudo, bem sabemos que nada substitui a sala de cinema e é aí que continuamos a querer ver aqueles filmes que aguardamos com maior expectativa. Apesar de sermos todos cúmplices das facilidades que nos oferece a pirataria, bem sabemos que o filme é das salas, a alto e bom som, com ou sem pipocas, mas é ali naquele lugar de frente para o grande ecrã que conseguimos sentir melhor as grandes emoções.
Sendo o cinema um palco de grandes emoções, é também ele um espaço de memória e em boa hora se decidiu repor o Vertigo e o Psycho. Abriu-se com isto um precedente importante. A verdade é que as pessoas interessam-se pelo bom passado e quem nunca teve oportunidade de ver no grande ecrã os grandes clássicos, alimentou sempre o desejo de os ver, porque em sala é diferente e é melhor. A noticia de que a Columbia Tristar Warner irá iniciar um programa de Sessões Clássicas é uma grande noticia. E que melhor começo do que Taxi Driver que, na minha humilde opinião, é simplesmente um dos melhores filmes de todos os tempos. Em versão restaurada digitalmente, na melhor qualidade possível, muito melhor até do que quando o filme estreou em 76, enfim, coisas que só esta Era podia permitir.
Há muito tempo que as grandes salas desapareceram e com elas o frenesim das grandes estreias e das grandes estrelas. Já não é possível recriar todo esse ambiente e todo esse tempo, mas do passado se fez o presente e resta-nos os filmes para olhar até sempre.

março 14, 2013

O vento de Béla Tarr


Confesso que vi o Cavalo de Turim em dois ou três dias, porque adormeci. Não imputo total responsabilidade ao filme porque provavelmente também pesou o cansaço dos meus dias, mas quando acabei de o ver escrevi um poema que não cabe aqui reproduzir. Mas foi isto que o filme meu deu, um poema. E nos dias que correm, com uma desinspiração de versos latente, isso só pode ser uma coisa boa. E o Cavalo de Turim foi uma coisa boa que aconteceu o ano passado.
Não será digerível para a maioria das pessoas e quem não lhe reconhece o valor ou o mérito não merece castigo. É uma questão de gosto, sensibilidade ou disponibilidade e isso não se discute. É verdade que ao longo do filme está sempre a passar a mesma música, é verdade que somos confrontados sempre com as mesmas tristes rotinas uma vez e outra e outra vez, é verdade que há poucas falas e que há sobretudo silêncios e vento, muito vento. Confrontados com esta afronta aos nossos sentidos que pode fazer exasperar até os mais pacientes levando à desistência do filme, é bom reconhecer que também nós, confrontados diariamente com os mesmos problemas, com os mesmos acordares, com os mesmos hábitos e despertares, com as mesmas pessoas ou com os mesmos lugares, não desistimos das nossas vidas. Nós continuamos, uns mais conformados do que outros, mas continuamos. A nossa vida é em si um acumular de rotinas e excessos de desmedidas banalidades, apenas mudam os objectos a que nos agarramos e que determinam as nossas prioridades. 
Sem grandes pretensões, tal a vida dos mais simples, o Cavalo de Turim de Béla Tarr manifesta a pureza do objectivo, a luta pela sobrevivência, um cuidar até à morte daquilo que nos é querido e uma homenagem a quem resiste contra a ventania.

março 08, 2013

O psicopata de Hitchcock


Falei há tempos do terror por meio da personagem-caricatura de mal, isto para dar significado à multiplicidade do objecto do género. O terror apareceu com o nascimento destas personagens míticas e toda a sua envolvência mística. Mais tarde apareceu a natureza com suas gigantes criaturas, seres de outros planetas, mutação da raça humana e a perversão fácil dos serial killers das massas como Freddy, Jason, Michael e Leatherface. Porém, há ainda essa espécie de terror que usa a máscara do homem comum para esconder a verdadeira face obscura e traumatizada que dá corpo ao que se pode entender por loucura e que resulta no retrato do psicopata.

Norman Bates é um psicopata. Ele vive em função de estranhas obsessões resultantes de traumas da juventude, tal Ed Gein, e acrescenta ao horror das suas opções, a negação da morte da mãe preservando física e materialmente nele próprio a continuação da sua vida, que obviamente não passa de um embuste. É nesta complexidade que está mergulhada a existência de Norman Bates que não distingue o que é moralmente correcto ou errado vivendo num labirinto de hábitos macabros e verdades subvertidas, pois é disto que os psicopatas são feitos.

E é para este universo que Hitchcock nos conduz. Mesmo que do lado do psicopata esteja uma pessoa aparentemente simples, simpática e inofensiva, ele não é por isso menos perigoso e Hitchcock faz desta personagem e deste caso um filme de terror. Cada plano e cada lance de imagem desperta um mistério que vamos deslindando à medida que o psicopata se revela como naquele buraco na parede por onde ele espreita, naquela morte prematura e cruel no chuveiro, no motel imutável com os bichos embalsamados ou naquela casa assombrada onde reside o derradeiro segredo. Ao longo do filme, vamos ganhando consciência sobre o pesadelo deste psicopata, mas a verdade é que no final vemos que não estamos preparados para a revelação bizarra de Norman Bates.
Este filme de Hitchcock é um exemplo da sua tenacidade e coragem. Em Psycho, ele fez-nos ouvir o medo e deu-nos um susto para onde olharmos. Em grande plano.

março 04, 2013

O taxi driver fala comigo

Quando Travis pergunta you talkin’ to me?, ele na verdade está a provocar-nos. Ele está a perguntar se estamos a falar com nós mesmos, tal como ele o está a fazer. Não se trata de qualquer personagem imaginária, alucinação ou loucura. É bem real. Através do filme, esta personagem pergunta-nos até quando vamos ficar calados, até quando vamos ficar sem fazer nada, até quando vamos aguentar toda a injustiça do mundo, até onde suportaremos o silêncio do outro (o próprio) perante o que o rodeia e até quando esse outro submisso vai continuar a dizer-nos o que fazer ou não fazer...
O taxi driver é o homem comum que circula nesta vida e que tem a capacidade para tornar-se um herói. Ele é O herói. E o táxi driver finalmente compreende que a sua insignificância não o pode condenar à apatia. É esta tomada de consciência que dá o significado ao statement de Travis. Ele agora já compreende e age para livrar o mundo da escumalha que ele entende por aqueles que vivem da exploração dos outros seres humanos. Tem razão. E Travis tem finalmente coragem para olhar nos olhos das pessoas e confrontá-las com a sua realidade. Ele reconhece a beleza no mundo e esforça-se por amar a Mulher; ele quer humanizar os indignos e convertê-los para o Mundo; ele até quer entender a Politica e acreditar no governador, mas é genuíno e verdadeiro demais para isso.
No fim, ele sabe que tem de ir mais além e decide por isso tornar-se um revolucionário urbano que acredita que por salvar uma vida consegue salvar um mundo inteiro. E fê-lo.

fevereiro 26, 2013

O método da superação

Quero apenas salientar o que foi porventura a coisa mais previsível dos Óscares: a entrega do prémio de Melhor Actor. Mas esta é uma previsibilidade boa de salientar. O facto de Daniel Day-Lewis ter ganho o prémio a actores que tiveram representações soberbas nos seus filmes realça duas coisas. Em primeiro lugar, que Day-Lewis fez de facto um papel que vai ficar para a história e em segundo lugar é que estamos perante o melhor actor da actualidade e talvez um dos melhores de todos os tempos.
O “método” de Day-Lewis é a forma que ele entende como melhor para estabelecer um compromisso de superação pessoal em função da construção da personagem. E ninguém pode negar o mérito que ele tem em consegui-lo. Neste último filme, Daniel Day-Lewis é Lincoln e não há maneira melhor de parece-lo do que sê-lo de uma forma tão perfeita que nós ficamos a acreditar que Lincoln era assim, daquela forma, como Daniel Day-Lewis foi. É mais do que acreditar até, é saber que Lincoln era assim.
Daniel Day-Lewis é provavelmente o actor que leva mais ao extremo o seu ofício e um sinal disso não é apenas a opção do “método”, como também é o facto de ele trabalhar em poucos filmes o que cria à sua volta uma aura de excepcionalidade e rigor ao contrário de De Niro que embarcou numa febre de filmes medíocres com a entrada no novo século, que nem esta última nomeação disfarça.
O percurso de Daniel Day-Lewis mostra-nos que irá continuar a dar a sua vida pelas personagens em que acredita e que dada a raridade, a sua aparição continuará a ser por si só um evento dentro do cinema.